O presidente Lula ficou bastante irritado com a reportagem publicada no último final de semana pela Veja. A revista diz que o banqueiro Daniel Dantas possui documentos que mostrariam que o presidente e outros petistas influentes têm contas bancárias em paraísos fiscais. Ao ser questionado por jornalistas sobre o assunto, em Viena, Lula afirmou que Veja não traz uma denúncia. "A Veja traz uma mentira", afirmou. "Se tivessem me avisado que eu tinha 38 mil euros, eu teria comprado um presente para dona Marisa. Fico sabendo quando vou embora".
O ministro das Relações Institucionais, Tarso Genro, confirmou que o governo acionará a revista e Daniel Dantas, dono do Banco Opportunity, na Justiça. Em princípio, o governo cogitou de entrar com processo apenas contra Dantas. Mas, depois que o banqueiro desmentiu grande parte da versão que a revista lhe atribuiu (em entrevista publicada hoje pela Folha de S. Paulo), o Palácio do Planalto passou a considerar inevitável entrar com processo também contra a publicação.
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O ex-ministro Luiz Gushiken também anunciou que já constituiu advogado para dar entrada em processo judicial (contra Dantas ou a revista) e estranha não ter sido procurado por Veja para se manifestar sobre o assunto.
A Polícia Federal anunciou que abrirá inquérito para apurar a autenticidade dos documentos revelados pela revista. Por meio de nota, a PF informou que o inquérito está sendo aberto "tendo em vista as notícias que evidenciam a produção de dossiês forjados para tentar incriminar falsamente autoridades públicas".
Membros do governo estão convencidos de que Veja deu crédito a um novo dossiê Cayman (conjunto de papéis falsos que mostrariam contas secretas de FHC e outros próceres do seu governo naquele paraíso fiscal). Discretamente, admitem que a denúncia é tão disparatada e foi publicada com tamanho descuido que poderá ser capitalizada por Lula e pelo PT, que teriam a chance de posar de vítimas de uma acusação absolutamente falsa.
Segundo a edição desse domingo do jornal Folha de S. Paulo, o diretor da Polícia Federal, Paulo Lacerda, outro incluído na lista como titular de conta em paraíso fiscal, alega "que a conta no exterior pertence a um homônimo e que havia explicado isso à revista". Outro citado, o senador Romeu Tuma (PFL-SP), disse que processará Dantas e a Kroll, empresa que Dantas teria encarregado de fazer a investigação. "É a coisa mais absurda do mundo. Nunca tive conta no exterior. Não tenho dinheiro para ter conta no exterior. Tenho duas contas no Brasil, que é onde recebo", alegou Tuma.
O jornal noticia que "auxiliares diretos do presidente afirmaram à Folha que o empresário e banqueiro Daniel Dantas, dono do grupo Opportunity, estaria tentando ‘chantagear’ o governo". Tarso Genro declarou: "Estou falando especificamente de Lula. Essa é uma informação infamante e caluniosa que, seguramente, terá as respostas legais adequadas".
Enquanto isso, no Congresso, a oposição já não sabe se vale a pena chamar Dantas para depor. O presidente da CPI dos Bingos, senador Efraim Morais (PFL-PB), afirmou que pretende se reunir hoje com o relator da comissão, senador Garibaldi Alves (PMDB-RN), e com líderes dos partidos no Senado para definir quando e como tomarão o depoimento de Daniel Dantas.
A possível convocação de Dantas pretende esclarecer a denúncia de que o PT teria procurado o grupo e pedido propina de "dezenas de milhões de dólares" entre 2002 e 2003, que não teria sido paga. "Vamos ouvir os líderes para ver a viabilidade. Se for para ouvi-lo, só se for muito necessário porque temos a idéia de antecipar o relatório para o início de junho", disse Garibaldi.
Veja a seguir todos os aspectos da repercussão do material veiculado por Veja.
Lula: "Veja chegou ao limite"
Veio de Lula a resposta mais indignada à reportagem. Para o presidente, alguns jornalistas da principal revista semanal do país já há algum tempo estão merecendo "o Prêmio Nobel de irresponsabilidade": "Eu só posso considerar isso como um crime praticado por um jornalista ou por uma revista. Eu não posso comparar isso ao jornalismo. Sinceramente, é de uma leviandade e de uma grosseria que um ser humano comum não pode admitir, quanto mais um presidente da República. Ou seja: eu acho que quando as pessoas têm o poder de escrever alguma coisa, aumenta a responsabilidade. Eu acho uma total irresponsabilidade. Vocês conhecem alguns jornalistas que eu estou citando, vocês sabem o que eles têm feito nesses últimos meses".
Lula foi além: "Eu não acredito que dentro da revista Veja tenha uma única pessoa que tenha 10% da dignidade e da honestidade que eu tenho. Eu não posso admitir isso! Eu não posso! É uma ofensa ao presidente da República, é uma ofensa ao povo brasileiro. E eu acho que essa prática de jornalismo não leva o país a lugar nenhum".
Perguntado sobre quais medidas adotará contra a revista, Lula declarou: "Eu não sei, nem li a matéria direito. Vou ter de chegar ao Brasil e ler. Eu acho uma insanidade, uma insanidade. Eu posso dizer a vocês que é a pior prática de jornalismo. A Veja já vem assim há algum tempo. Não é de hoje não. Mas eu acho que ela chegou ao limite, chegou ao limite, chegou ao limite. Eu não sei se o jornalista que escreve uma matéria daquela tem a dignidade de dizer que é jornalista. Ele poderia dizer que é bandido, mau caráter, malfeitor, mentiroso. Eu não posso e é até constrangedor um presidente da República saber que tem uma mentira dessa grosseria numa revista que deveria respeitar seus leitores. Os leitores pagam a revista, são induzidos a assinar. E não merecem a quantidade de mentiras que ela tem publicado".
A reação de Gushiken e Thomaz Bastos
Outro que se manifestou foi o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, também acusado pela reportagem de ter conta secreta no exterior. Por meio de assessores, o ministro informou que "são totalmente infundadas as informações veiculadas pela revista Veja". Segundo a assessoria de Thomaz Bastos, todos os investimentos do ministro "foram devidamente declarados e com recolhimento de impostos, como consta em sua declaração de Imposto de Renda".
O ex-ministro de Comunicação Institucional e atual chefe do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, Luiz Gushiken, afirmou: "Pedi a um advogado para ver quem devo processar, se Dantas, se seus informantes, se a revista ou se todos. Não posso deixar que meu nome seja exposto à execração pública por uma calúnia".
"Não tenho conta no exterior", refutou Gushiken. "É uma mentira. Uma chantagem. Dantas tenta sair da posição de corruptor que sempre foi para a de vítima e achacado".
Oposição não sabe se convoca Dantas
O Congresso em Foco apurou que membros da oposição estão divididos quanto à conveniência de convocar o banqueiro Daniel Dantas para depor no Congresso sobre as pressões que ele diz ter recebido do PT e do governo Lula. O empresário baiano conta que foi chantageado pelo ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares. "O que houve foi uma sugestão de que, se déssemos uma quantia expressiva ao partido, eles poderiam nos ajudar a resolver as dificuldades que estávamos tendo com o governo", disse ele ao colunista Diogo Mainardi, da revista Veja, referindo-se à falta de apoio que encontrou na administração Lula para permanecer no controle da Brasil Telecom (BrT).
Na última quinta-feira, o relator da CPI dos Bingos, senador Garibaldi Alves (PMDB-RN), chegou a divulgar a data em que Dantas seria ouvido: a próxima quarta-feira, 17. Agora, está em dúvidas. Ele teme que o depoimento seja tão inútil quanto o dado na última quarta (10) pelo ex-secretário-geral do PT Silvio Pereira. Silvinho, depois de revelar ao jornal O Globo novos e bombásticos detalhes sobre o funcionamento do valerioduto, mais confundiu do que explicou ao ser questionado pela comissão.
Na mesma quarta-feira, vieram a público documentos em que o Opportunity formalizou, em processo que tramita na Corte de Nova York, a acusação de que foi pressionado a repassar "dezenas de milhões de dólares" ao PT para garantir a preservação em suas mãos do controle da BrT. Integrantes da oposição pensaram até em pedir a instalação de uma CPI para aprofundar a investigação do assunto. Agora, não sabem sequer se vale a pena chamar Dantas para falar na CPI dos Bingos.
O problema está nas controvérsias que envolvem o banqueiro, que é protagonista há seis anos daquele que é considerado o maior conflito societário da história brasileira. Ele põe em confronto o dono do Opportunity, os principais fundos de pensão do país e, mais recentemente, o Citibank. Ex-aliado de Dantas, o grupo norte-americano sentiu-se lesado por negócios feitos pelo banqueiro e hoje busca na Justiça nova-iorquina indenização pelos prejuízos que Dantas lhe causou.
No centro da disputa, o controle da terceira maior operadora brasileira de telecomunicações, a Brasil Telecom, de cujo comando o Opportunity foi afastado em setembro do ano passado. Desde então, os novos diretores da empresa têm trazido a público fartas acusações de irregularidades cometidas pelos antigos administradores. Denúncias feitas à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) indicam que os atos irregulares trouxeram aos acionistas da BrT danos financeiros superiores a R$ 500 milhões.
Outro ponto polêmico da trajetória empresarial de Dantas, que responde no momento a dezenas de processos movidos por sócios e ex-parceiros comerciais, é sua participação na privatização feita durante o governo Fernando Henrique. Diálogos entre membros do antigo governo, grampeados ilegalmente e revelados pelo jornal Folha de S. Paulo, sugerem a existência de um esquema para favorecer o Opportunity na venda das companhias estatais de telefonia.
Dantas nega versão
Para deixar o quadro ainda mais nebuloso para a oposição, o próprio Daniel Dantas desmentiu a versão de Veja. Em entrevista à repórter Janaina Leite, publicada ontem pela Folha, o banqueiro nega ter documentos sobre contas bancárias do presidente Lula e de outros poderosos brasileiros no exterior.
Segundo a edição do último fim de semana da revista Veja, tais documentos são a principal parte do arsenal que Dantas possui de armas com capacidade para demolir o governo e o PT. A semanal afirma que a obtenção das contas foi um dos serviços prestados pela Kroll ao empresário baiano. O banqueiro nega as duas coisas.
Dizendo que jamais contratou serviços de investigação com esse objetivo, afirmou: "Tive conhecimento posterior, isto sim, de que havia suspeita da existência de cópias de tais contas. Disseram-me que havia o número das contas no exterior de pessoas ligadas ao governo, inclusive do presidente Lula. Mas não vou falar quem me disse, pois não dei a menor credibilidade".
Ele acrescenta que nem repassou nem autorizou ninguém a repassar à Veja material sobre o assunto. E completou: "Veja mente quando diz que tinha um compromisso comigo para preservar meu nome como fonte, caso essas contas fossem verdadeiras. Isso nunca existiu".
O empresário mantém na entrevista a versão que havia dado em setembro de 2005 em reunião conjunta das CPIs dos Correios e do Mensalão: garante que jamais pagou propinas ao governo ou ao PT. Mas insinua que sofreu extorsão. Explica que não revelou isso à época às CPIs porque somente agora tem "novos elementos". Estaria impedido de se manifestar sobre eles, porém, porque eles integram o processo que tramita em sigilo na Corte de Nova York. A ação foi proposta pelo Citibank, que cobra do Opportunity mais de US$ 300 milhões por práticas irregulares e quebra de suas obrigações em relação ao banco norte-americano.
"O PT", conta Dantas, "abordou Carlos Rodenburg (ex-diretor do banco) dizendo que eles tinham dificuldades. Na época, pelo que me lembro, Carlos me reportou que Delúbio Soares teria dito a ele que o partido era uma coisa separada do governo. Que, na verdade, existia uma necessidade financeira do partido, de uns US$ 50 milhões, decorrente de despesas e coisas que o valham, e que isso não tinha nada a ver com o governo. Ele entendeu, não sei se o sr. Delúbio Soares disse ou não, que era possível que nós pudéssemos ‘ser úteis’ a essas dificuldades, que eles poderiam tentar diminuir as hostilidades que vínhamos sofrendo do governo".
"Ou seja, se pagasse ao PT, o Opportunity deixaria de ter dificuldades junto ao governo", conclui a repórter.
"Esse resumo que você está fazendo, e que a Veja tentou fazer, não aconteceu. Ele (Delúbio) nunca disse que, se porventura nós pudéssemos contribuir e ajudar nas dificuldades (do PT), que de forma automática cessariam as hostilidades", rebate Dantas.
Em trecho mais à frente, a repórter indaga: "O sr. foi extorquido pelo PT ou representantes do governo?". Dantas responde: "Não".
"Mas isso não contradiz sua defesa no processo em Nova York?", replica Janaina Leite.
"A linguagem da Corte tem de ser uma linguagem mais forte, mais firme".
"Perdoe-me, mas ou o sr. foi extorquido ou não foi?"
"Ninguém chegou para mim e disse que, se fosse feito um pagamento de tanto, acabariam todos os problemas. Isso não aconteceu: seria chantagem. O que aconteceu é que foi ‘sugerida’ a contribuição e o pagamento não foi feito, exatamente como está nos documentos. Tínhamos contratos que foram descumpridos, colocaram pressão contra nós e fomos discriminados. Fato é que fomos prejudicados".
Veja defende reportagem em nota
A revista Veja divulgou nota defendendo a reportagem sobre as contas do presidente Lula e de outras autoridades em paraísos fiscais no exterior e a descrição do proprietário do Opportunity, Daniel Dantas, como o "banqueiro-bomba", dono de documentos com poder de destruição capaz de lançar pelos ares o governo e o PT.
Segue a íntegra da nota, assinada pelo diretor de redação da revista, :
"1) O presidente Lula não leu e não gostou do que não leu. Ainda assim reagiu intempestivamente à reportagem de Veja. Insultou jornalistas e a publicação, uma atitude imprópria para um presidente da República. É imperioso ler antes de criticar.
2) Veja chegou ao posto de mais respeitada e lida revista brasileira e quarta revista semanal de informação do mundo pela qualidade de suas reportagens.
3) Houvesse o presidente Lula lido a reportagem, teria percebido que se trata de um trabalho de investigação jornalística sobre as atividades do banqueiro Daniel Dantas, com o qual seu governo mantém uma relação tão conflituosa quanto incestuosa, relação que vem sendo objeto de reportagens de diversos veículos de comunicação.
4) O presidente disse que o autor da reportagem poderia ser chamado de ‘bandido e malfeitor’. Disso Lula entende. Nada menos do que 40 de seus companheiros mais próximos foram descritos pelo procurador-geral da República como integrantes de uma ‘quadrilha’.
5) A reportagem em questão é fruto de seis meses de investigação. A divulgação do resultado do trabalho de apuração, como a própria reportagem ressalta, foi feita justamente para evitar o uso das supostas contas como elemento de chantagem.
6) A revista, em sua reportagem, não afirma que a conta bancária atribuída ao presidente Lula é verdadeira. Também não diz que é falsa, por não dispor de meios suficientes para fazê-lo
7) Para concluir, Veja reafirma seu compromisso com os leitores e com o Brasil de prosseguir em sua tarefa de fiscalizar o poder em todas as suas esferas, a fim de impedir que ‘sofisticadas organizações criminosas’, para usar das palavras do procurador-geral da República, continuem a corroer a democracia brasileira."