Soraia Costa
Carnaval é época de descontração e divertimento, mas a alegria também dá passagem ao desabafo. E assim surgem as sátiras políticas, presentes nas marchinhas de Carnaval e que tratam, sempre de maneira bem-humorada, dos acontecimentos políticos em voga na época.
A relação entre a política e o Carnaval é antiga, vem de muito antes, portanto, de mensaleiros e sanguessugas botarem seus blocos na rua. E remete aos tempos do Império, antes mesmo de a festa se tornar um símbolo nacional. Já no século passado, as clássicas marchinhas – quase sempre críticas – também serviram para render homenagens ou relembrar fatos históricos.
Em seu mais recente livro, “Política e Religiões no Carnaval” (Ed. Irmãos Vitale), lançado em janeiro, o jornalista, produtor cultural e escritor Haroldo Costa (foto) apresenta alguns exemplos de como os fatos políticos influenciaram e continuam a contagiar a festa mais tradicional do país.
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“O livro faz um levantamento da política como fato ao longo da história do Brasil”, explica Haroldo Costa, um dos mais profundos conhecedores do Carnaval carioca. A primeira manifestação dessa relação entre política e Carnaval remete a 1761, quando foi feita uma homenagem ao nascimento do príncipe da Beira D. José, conta o escritor.
Depois, em 1786, um novo desfile foi realizado nas ruas do Rio de Janeiro para comemorar o casamento de D. João IV com a princesa Carlota Joaquina. A festa foi produzida pelo vice-rei Luis de Vasconcelos.
O início da festa
Tradicionalmente costuma-se atribuir o início do Carnaval à chegada da família real portuguesa no Brasil, em 1808. Mas a festa começou muito antes, garante Haroldo Costa. E, surpreendentemente, chegou primeiro a Porto Alegre, com a vinda, em 1762, de 60 casais da ilha dos Açores que trouxeram para cá o entrudo. Essa primeira manifestação carnavalesca era semelhante ao Carnaval de rua de Pernambuco: blocos de rua com bonecos gigantes.
“Depois, por volta de 1820, foram formadas as sociedades carnavalescas, que se engajavam na luta política. Elas eram pré-abolição e pró-República”, diz Haroldo ao Congresso em Foco.
Intelectuais e artistas da época participavam dessas sociedades, que ficaram conhecidas pelos “carros de idéia” (antecessores dos atuais carros alegóricos), nos quais tomavam posição contra abusos e erros de autoridades. Em 1881, por exemplo, o grupo batizado de "Os Fenianos" – cujo nome era uma homenagem a revolucionários irlandeses – levou às ruas do Rio um carro com a figura do então imperador D. Pedro II representado com uma mancha no peito. “Era a mancha da escravidão”, explica o pesquisador.
Ele também lembra que os dois primeiros presidentes brasileiros, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, também foram “homenageados” no Carnaval e ganharam marchinhas próprias.
“Então a história do Carnaval é pontuada por músicas que falam de fatos políticos. No Estado Novo também havia várias musicas sobre Getúlio Vargas. Embora elas sempre falassem bem dele, por causa da censura, sempre apareciam alguns carros de crítica nos desfiles”, relata Haroldo Costa. Entre as composições enaltecedoras dedicadas ao então presidente está “Seu Getúlio” (veja a letra), de André Filho, que viria a compor o hino Cidade Maravilhosa.
No bico da chaleira
A sátira política nas músicas de Carnaval, conta o pesquisador, ajudaram até a inventar um verbo: “chaleirar”, que hoje é usado para caracterizar o bajulador, o famoso puxa-saco.
O senador gaúcho José Gomes Pinheiro Machado, líder do Partido Republicano Conservador, era conhecido por sempre tomar chimarrão em suas reuniões. Um dia, quando um de seus auxiliares foi servir a água quente para colocar no mate, em vez de segurar na asa, pegou no bico da chaleira. O episódio deu origem a uma marchinha de Carnaval.
A música “No Bico da Chaleira”, de Juca Stotoni, fez sucesso no Carnaval de 1909. Sua letra, embora não trouxesse o novo verbo, ajudou a consagrá-lo como sinônimo de bajular entre a população. A marchinha dizia: “Iaiá, me deixe subir nessa ladeira/ que eu sou do grupo que pega na chaleira". Uma das figuras mais fortes do Legislativo, Pinheiro Machado morava no alto do Cosme Velho, no Rio. A música fez tanto sucesso que resultou na peça de teatro-revista Pega na chaleira, de Raul Perderneiras e Ataliba Reis (ouça a canção).
Festa nacional
A política está presente tanto no Carnaval de rua quanto nos enredos das escolas de samba. As escolas do Rio de Janeiro, por exemplo, já homenagearam Juscelino Kubitscheck, Tiradentes e Zulu dos Palmares, figuras marcantes da história do país.
Em 1989, ano do centenário da República, o samba da Imperatriz Leopoldinense, “Liberdade, Liberdade! Abre as Asas sobre Nós!”, arrasou na avenida (ouça). Vencedor daquele ano, ele ainda hoje é um dos enredos mais lembrados da folia carioca (veja a letra).
“Carnaval é liberação total. É um momento de divertimento e de democratização. E a crítica política também entra nessa liberação”, defende Haroldo Costa, acrescentando que o Brasil é o único país do mundo que tem o Carnaval como uma festa nacional.
Para ele, é no Carnaval que as pessoas encontram espaço para transmitir suas emoções, sejam de satisfação ou de insatisfação. Este ano no Rio, por exemplo, ele acredita que vários blocos falarão sobre o boicote ao pagamento do IPTU, assunto que tem mexido com a cidade e tirado o sono do prefeito César Maia (DEM).
“O Carnaval no Brasil é um acontecimento que mobiliza todo mundo. Tem crítica, mas também tem homenagem e elogio. Nos outros países a festa é mais localizada e, na maioria das vezes, consiste em um baile de máscaras ou um desfile de carros”, diz o pesquisador.
Só Brasil
Por décadas, o n