Mesmo sendo considerado por seus colegas um dos mais profundos conhecedores do submundo do Congresso, o jornalista Lúcio Vaz admite que se surpreendeu com o esquema do mensalão e a dimensão da atual crise política. “O que impressiona na atual crise é a complexidade e a amplitude do sistema montado pelo PT”, afirma, ao lembrar que nem os casos Collor e dos Anões do Orçamento envolveram tantos parlamentares e partidos políticos.
Com a experiência de quem há 20 anos vasculha os bastidores do Congresso, o repórter do Correio Braziliense não se ilude com a troca no comando da Câmara: a renúncia de Severino Cavalcanti (PP-PE) não representa a queda do chamado baixo clero, nem o fim das negociações espúrias que fazem a Casa funcionar. “O Congresso é sustentado pela ética da malandragem”, constata.
A atual onda de escândalos é a primeira a estourar após a publicação do livro A Ética da Malandragem – No Submundo do Congresso Nacional (Geração Editorial), lançado este ano pelo jornalista, com base no relato de algumas de suas principais reportagens. Na obra, ele conta como descobriu e revelou irregularidades que tiveram repercussão nacional mas que, ainda assim, não afastaram da vida pública a maioria de seus protagonistas.
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Alguns, como o atual corregedor da Câmara, Ciro Nogueira (PP-PI), e o vice-líder do PTB Nelson Marquezelli (SP), inclusive, ainda circulam com desenvoltura pela Casa. Outros se mantêm na política, mas em posições mais modestas, como os ex-deputados Basílio Villani (PSDB-PR) e José Gomes da Rocha (PMDB-GO), que se viram obrigados a trocar Brasília pelo dia-a-dia da vida pública local.
“Em meu livro, falo de um caso de um deputado que se queixa do não-cumprimento, por parte do Executivo, de um pacto de venda de votos. ‘Até nesse tipo de atitude tem de ter uma ética’, reclamava o deputado. É essa a ética da malandragem”, conta Lúcio Vaz, nesta entrevista exclusiva ao Congresso em Foco.
Congresso em Foco – O senhor é considerado, por muitos de seus colegas, o “repórter do baixo clero”. Mas quem, afinal, não é “baixo clero” no Congresso hoje?
Lúcio Vaz – Tem baixo clero e cardeais no Congresso. Os cardeais são esses parlamentares que ficam se alternando entre cargos da mesa, lideranças partidárias e presidências de partidos. Aí se incluem deputados como Alberto Goldman (PSDB-SP) e Michel Temer (PMDB-SP) e senadores como Jorge Bornhausen (PFL-SC) e José Agripino Maia (PFL-RN). Esses parlamentares perderam espaço para o baixo clero, que chegou ao poder. Mas depois dessa experiência amarga com o Severino Cavalcanti, que provocou um desgaste enorme para a imagem da Câmara, os cardeais vão querer assumir o lugar que lhes pertence pela experiência e a liderança que eles têm. Espaço do qual eles, inesperada e inexplicavelmente, abriram mão para um aventureiro.
O Congresso é composto, em sua maioria, por “Severinos”?
Eu acho que não. Por coincidência, o Severino teve 300 votos, e o Lula dizia, antes de ser presidente, que o Congresso tinha 300 picaretas, mas deve ser somente coincidência. Não existem 300 pessoas nesse nível. Foi uma coincidência que a turma do baixo clero, que tenha talvez uns 200 votos, aliada a uma oposição mais ferrenha ao governo Lula, tenha conseguido aqueles 300 votos.
Ainda há muitos “Severinos” em circulação na Câmara que passam sem ser percebidos?
Com certeza. Na abertura do meu livro (A Ética da Malandragem – No Submundo do Congresso Nacional), eu cito Severino Cavalcanti, Ciro Nogueira e os ex-deputados Ronivon Santiago (PP-AC), José Gomes da Rocha (PMDB-GO) e Basílio Villani (PSDB-PR) como semelhantes. O Severino já saiu da Casa. O segundo da lista é o Ciro Nogueira. Ronivon Santiago teve o mandato cassado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por abuso de poder econômico, e o Basílio Villani aparece em três capítulos do livro fazendo todo tipo de fraude. E ele sempre se manteve na Casa, porque o que sustenta o Congresso é a chamada “ética da malandragem”. Uma ética própria que só existe neste submundo do Congresso.
O que caracteriza essa ética da malandragem no Congresso?
A ética da malandragem é uma ética própria, que sustenta relações espúrias que existem entre parlamentares, partidos, Congresso e Executivo. Cito, no livro, vários casos de parlamentares que "vendem" seus votos, trocam-no por favores, verbas públicas, cargos, posições no governo e, por vezes, até outras coisas. Mas por que alguém vende votos, e por que alguém compra votos? Para facilitar as negociações. Em meu livro, falo de um caso de um deputado que se queixa do não-cumprimento, por parte do Executivo, de um pacto de venda de votos. "Até nesse tipo de atitude tem de ter uma ética", reclamava o deputado. É essa a ética da malandragem.
O corregedor-geral da Câmara Ciro Nogueira, que ficou em terceiro lugar na eleição dessa quarta-feira, difere em que aspectos de Severino, seu padrinho político?
Ele é um pouco mais preparado. Mas no meu livro ele também aparece como alvo de denúncias. Ele contratou quatro parentes para fazer o chamado “nepotismo cruzado” com o senador Efraim Morais (PFL-PB). Ciro colocava seus parentes na primeira vice-presidência da Câmara, ocupada pelo então deputado Efraim Morais. Em contrapartida, Efraim colocava seus parentes na quarta-secretaria da Câmara, comandada na época por Ciro. Ele é um parlamentar de baixo clero que gosta desse tipo de mordomia, embora me pareça, pelo discurso, uma pessoa um pouco mais preparada do que o Severino. Por isso ele é chamado de “príncipe do baixo clero”. Espero que sem mandato.
O senhor é conhecido no meio jornalístico como um repórter do “submundo” do Congresso. Severino Cavalcanti, que renunciou ao mandato, seria o principal retrato desse submundo?
Ele é o representante máximo de parlamentar que está aqui para arrumar o lado dele, os parentes, os altos salários e os privilégios, não para defender os interesses públicos. Já aconteceram outros, como o ex-deputado Nilson Gibson (PSB-PE), que há uns 10 anos era chamado de presidente do “Sindicato dos Deputados”. Nilson Gibson defendia aumento de salário para deputados, contratações de parentes e coisas do tipo. Mas Severino Cavalcanti veio com a mesma bandeira e teve uma capacidade de organização maior, formando um grupo forte até chegar ao poder. Se bem que a chegada de Severino ao poder se deu muito porque, naquele momento, o Congresso estava reagindo ao Executivo. O governo Lula é considerado pelos parlamentares como um governo que desprestigia muito o Congresso, entope a Casa com medidas provisórias e não executa as emendas dos parlamentares. À época da eleição para a presidência da Casa, foi isso que provocou uma reação e fez com que os deputados, em protesto ao governo Lula, acabassem votando em Severino. Ou seja: não foi só o baixo clero que votou nele. Lideranças expressivas do PSDB e do PFL acabaram votando nele.
Em seu livro A Ética da Malandragem, o senhor se concentra em denúncias ocorridas no começo dos anos 1990. Há algo de diferente naquela década?
Na verdade, a maior parte das denúncias se refere aos anos de 1997 e 1998, véspera de período eleitoral. Embora ocorram generalizadamente, as irregularidades se concentram mais em períodos eleitorais, época em que acontecem muitas fraudes nas convenções partidárias estaduais, em que os governadores candidatos à reeleição distribuem prêmios para a população em troca de votos. Mas há coincidências. Tem, por exemplo, uma matéria sobre um deputado que contratou com dinheiro da Câmara, em 1997, um time de futebol.
Esse episódio é pitoresco, porque, em vez de ser cassado, o deputado denunciado acabou se reelegendo graças em parte à própria denúncia. Com foi isso?
Eu descobri que o deputado José Gomes da Rocha (atual prefeito do município goiano de Itumbiara) tinha usado a verba de gabinete para contratar sete jogadores de futebol para o Itumbiara Esporte Clube, que disputava a primeira divisão estadual. Eu fiz a matéria, e ele foi suspenso por um mês por conta desta denúncia. Só que, passada a suspensão, eu o encontrei no cafezinho da Câmara. Achei que ele estava agindo de um jeito estranho ao me ver. O deputado veio em minha direção, levantou a mão, parecendo que iria me agredir, mas, de repente, abaixou a mão para me cumprimentar. “Muito obrigado, você garantiu a minha reeleição”, disse. Então ele explicou que as enquetes feitas nas rádios locais indicavam que 90% da população de Itumbiara aprovava o que ele havia feito. E ele realmente foi reeleito, com 20 mil votos a mais do que na eleição anterior (José Gomes teve 35 mil votos em 1994, pelo PRN, e 55 mil votos pelo PSD, em 1998).
Pode se esperar número semelhante de fraudes em 2006?
Por um lado, é verdade de que em ano eleitoral há mais fraudes. Mas diante dessa investigação forte que está sendo conduzida pelas comissões parlamentares de inquérito (CPIs), concentrando-se muito em cima do esquema de caixa dois, os empresários vão ficar com o pé atrás e não devem participar desse tipo de coisa. O partido vai ter mais cuidado ao fazer um esquema desses, porque a vigilância está armada.
O senhor acompanhou de perto as principais crises políticas do país nos últimos 20 anos. O que diferencia a atual das demais, como os casos Collor e dos “anões do Orçamento”?
O que impressiona na atual crise é a complexidade e a amplitude do sistema montado pelo PT. O esquema de Paulo César Farias era um esquema que envolvia o ex-presidente Fernando Collor de Mello e seus amigos. Não envolvia muitos parlamentares. Já o caso dos “anões do Orçamento” atingiu somente a Comissão Mista de Orçamento. Agora, não. Trata-se de um esquema que envolveu toda a direção do partido que está no governo e vários parlamentares importantes, como o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha (PT-SP). E, além disso, outros partidos aliados, como o PL, o PP, o PTB. É uma base de apoio muito ampla que foi beneficiada por esse esquema de arrecadação de dinheiro.
Mesmo com a sua experiência na cobertura das entranhas do Congresso, o mensalão o surpreendeu?
A mim surpreendeu não o esquema em si, mas quem o estava fazendo. O PT firmou sua história no combate à corrupção, na defesa da bandeira da ética e da integridade. E, realmente, apesar de alguns casos aqui e ali, era um partido que se diferenciava nesse sentido, que tinha uma postura diferente dos tradicionais, como o PFL e o PMDB. O que a gente percebe agora é que o PT é igual a todos os partidos, algo lamentável.
Que desfecho o senhor antevê para a atual crise política?
Ela já tem um desfecho. Vários parlamentares vão perder o mandato e o PT vai perder muita força nas eleições do ano que vem. A minha dúvida é se a coisa ainda vai chegar ao presidente Lula. Para chegar a ele, é preciso que haja uma prova contundente, cabal. Essa prova ainda não existe. As CPIs estarão em andamento até dezembro, e até lá pode surgir alguma coisa. O que me preocupa é que, depois de um período de investigação muito forte, as CPIs entraram em marcha lenta. Há praticamente um mês que não surge uma informação importante daqueles documentos obtidos pelas comissões. Eu não sei se é só coincidência, ou se é uma tentativa de abafar, porque a crise começou a se espalhar pra todos os lados. Ela começou com o PT e o PTB. Depois foi para o PL e o PP. Quando percebemos, a investigação chegou ao PSDB de Minas Gerais (com a denúncia de que o “valerioduto” abasteceu a campanha do senador Eduardo Azeredo em 1998) e implicou o PFL (com a denúncia contra o deputado Roberto Brant). De repente, parece que os partidos concluíram que é melhor deixar as coisas como estão e evitar aprofundar muito as investigações, porque, do contrário, as CPIs pegarão todo mundo. Se não houver essa organização interpartidária, é possível que se chegue a alguma coisa forte em relação ao presidente Lula. Depois disso, viria o impeachment. Mas, por tudo isso, acho que a crise está cada vez mais longe do impeachment.
O senhor acredita na possibilidade de que PFL e PSDB estariam cozinhando Lula este ano para, no próximo ano, mover um processo de impeachment contra o presidente?
É uma possibilidade, mas não acredito. O impeachment é um processo muito doloroso para o país. A economia acaba tendo um abalo muito grande. O impeachment é, em princípio, interessante para o PSDB e o PFL, mas a economia iria à bancarrota. Voltaria a inflação, e o risco-Brasil aumentaria. Com isso, o vencedor da próxima eleição herdaria um país enfraquecido, esfacelado e ainda mais pobre. Talvez seja mais interessante para esses partidos manter Lula em banho-maria, enfraquecido pelo desgaste, e, no ano que vem, eleger um presidente de oposição, mas com o país ainda inteiro, com taxa de juros no lugar e risco-Brasil baixo.
Qual a sua avaliação da cobertura da crise pela imprensa?
A cobertura da imprensa é boa, tanto que tudo começou por causa de uma reportagem da revista Veja (sobre a corrupção nos Correios) e, em seguida, de uma entrevista publicada na Folha de S. Paulo (com Roberto Jefferson). Tudo a que se chegou até partiu da investigação da imprensa, de trabalho jornalístico. A imprensa está, em um segundo momento, acompanhando a investigação, e tem feito um trabalho bom, embora, às vezes, um pouco apressado.
Com denúncias de todos os lados, como os repórteres devem agir pra não cometer injustiças?
Basicamente, primeiro, ficar atento, abrir a parabólica, ver de onde vem a informação. O fundamental é que o jornalista tenha o cuidado de checar a informação, porque se colocarmos o nome de um deputado como sendo envolvido em um esquema desses, e daqui a uma semana, ficar provado que ele é inocente, não adianta mais. Ele já estará condenado pela população.