Matheus Boni Bittencourt *
Imagine que você é membro de uma associação civil, com a qual contribui regularmente. Esta associação convoca um protesto. Você, com suas contas em redes sociais, divulga, defende, pede apoio e participação para esta manifestação nas redes sociais. Dois amigos vão com você, conforme combinado pelas conversas privadas nas redes sociais. Durante o protesto, algo dá errado, a coisa sai do controle, algum ônibus e vidraças de bancos e palácios de governo são depredados, um policial é ferido, e dezenas de manifestantes são presos e agredidos. Você volta para casa, evitando os agentes da Polícia Militar que, como você aprendeu, fazem prisões arbitrárias a torto e a direito. Dois amigos vão com você, porque não conseguiram encontrar jeito de ultrapassar um bloqueio montado pela polícia. Você arranja um sofá e um colchão para que todos durmam na sua casa, e voltem para casa no dia seguinte. Pouco tempo depois, vocês três são presos provisoriamente e processados por “terrorismo”, pois assim foi classificada pela Polícia Militar, pelo Exército Brasileiro, pelo Ministério Público e pelos monopólios da mídia a manifestação da qual participaram.
Ao final do processo, o Tribunal Militar confirma a alcunha de “terrorismo”, e vocês são condenados: i) a 15 anos por “ofensa terrorista à vida”, por causa do policial ferido; ii) a 15 anos, por pagarem uma taxa anual para a associação civil da qual são membros; iii) a oito anos, por “terrorismo contra coisa”, por causa das depredações superficiais a ônibus e palácios de governo; iv) a oito anos, por “incitação ao terrorismo com agravante pelo uso da internet”, por causa do seu post nas redes sociais; v) a cinco anos, por “formar grupo terrorista”, pois a polícia invadiu a sua conta e descobriu que você combinou de ir com seus amigos na manifestação.
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E você é condenado ainda a mais três anos (“favorecimento pessoal ao terrorismo”), por ter dado abrigo aos seus amigos que também participaram do ato. Seus dois amigos são condenados a 51 anos de prisão, e você a 54 anos, tudo em regime fechado.
Pode parecer capítulo do romance 1984, de George Orwell, mas pode ser a minha, a sua, a nossa realidade dentro de pouquíssimo tempo.
Os políticos burgueses do Brasil estão, desesperadamente, tentando encontrar uma forma de criminalizar a ação coletiva direta. A Fifa também pressiona, acreditando que os protestos de massa poderão prejudicar os superlucros com a Copa do Mundo. Desde o início das “jornadas de junho”, políticos como Romero Jucá (PMDB-RR), Cândido Vaccarezza (PT-SP), Onyx Lorenzoni (DEM-RS), Walter Feldman (PSDB-SP) e João Campos (PSDB-GO) propõem essa legalização do terrorismo de Estado por meio de uma “lei antiterrorismo”, com apoio do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, aquele mesmo que disse há alguns meses que prefere morrer a ser preso. Seria um recado para os manifestantes?
Na verdade, como é fácil de perceber, uma lei destas é desnecessária. Um ato de terrorismo de verdade, seja privado ou de Estado, não precisa de “lei antiterrorista” para ser julgado. Já existem leis que criminalizam o homicídio, sequestro, tortura, lesão corporal, posse e uso ilegal de armas de fogo e de explosivos, organização criminosa, etc. Qual é a diferença se um sequestro ou assassinato é cometido para obter lucros, vingança privada ou para “provocar pânico generalizado… por motivo ideológico, religioso ou político”?
Enquanto agentes públicos e empresários envolvidos nos piores casos de corrupção pública e privada e de violações dos direitos humanos continuam livres e ricos e enriquecendo, manifestantes e ativistas que se mobilizam para reivindicar direitos em benefício de todos, podem ser encarcerados por penas draconianas que não são aplicadas aos mais brutais assassinos e estupradores.
Outro dispositivo do terrorismo de Estado é a chamada “internação compulsória”. Este projeto de lei revive os piores mecanismos do encarceramento manicomial, já analisados magistralmente por Michel Foucault e Erwing Goffman: usuários de droga poderão ser submetidos a tratamento forçado, que qualquer médico ou psicólogo sério sabe ser ineficaz para a cura da dependência química. A proposição legislativa também aumenta a pena do crime de tráfico de drogas ilícitas, tornando-a maior que a do homicídio. Que hierarquia de valores expressa essa lei? Que o falso moralismo vale mais que a vida humana.
O aumento da pena de prisão para traficantes de drogas terá um óbvio impacto no aumento do encarceramento. O resultado é mais superlotação, mais violência dentro das prisões e mais reincidência criminal. E mais gastos públicos para ampliação de vagas prisionais. Os empreiteiros agradecem.
Uma “pegadinha” escondida na proposta é: onde serão internados os viciados? A resposta é: em centros privados de “terapia”, muitos controlados por máfias evangélicas e sem profissionais da saúde. Estas “clínicas” e “comunidades terapêuticas” já gozam de incentivos fiscais, e pesam sobre várias delas acusações de abuso contra os internos, incluindo tortura, escravização e extorsão.
Se for aprovado o projeto de internação compulsória, o Estado pagará pela internação compulsória dos viciados mendicantes nos centros privados de “terapia”. Os mais fracos sempre pagam o pato, e famílias privilegiadas não gostariam de ver seus filhos nestas masmorras. Sobrará para favelados e mendigos. Nada como limpar as ruas de todos os efeitos do nosso modelo sócio-econômico excludente, e ainda ter bons lucros com isso!
* Sociólogo, mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e servidor público estadual no Espírito Santo.
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