Luiz Alberto dos Santos *
Tramitam no Congresso Nacional, no momento, inúmeras propostas de emenda à Constituição. Somente na Câmara dos Deputados, são nada menos do que 35 propostas de emenda à constituição com comissões especiais constituídas e em funcionamento, ou cujo parecer aguarda votação em plenário.
Entre essas, a mais relevante é a PEC 287/2016, a “reforma da previdência”, cuja apreciação em plenário está prevista para ser iniciada no dia 20.02.2018.
Nesse momento, em que é anunciada a edição de decreto presidencial instituindo intervenção federal na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, surgem dúvidas sobre os efeitos dessa decretação: ela impedirá a apreciação da PEC 287/2016 pelo Plenário? Ela poderá continuar tramitando na Câmara e seguir ao Senado? Se aprovada pelo Senado, poderá ser promulgada? Qual a condição para tal decreto manter-se vigente?
Em princípio, a Constituição Federal e clara:
“Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
I – manter a integridade nacional;
II – repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;
III – pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;
IV – garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;
V – reorganizar as finanças da unidade da Federação que:
a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior;
b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei;
VI – prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;
VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
b) direitos da pessoa humana;
c) autonomia municipal;
d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.
e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.”
Fora dessas situações, inexiste a possibilidade de intervenção do Governo Federal nos Estados, e cada uma dessas situações tem uma origem histórica e fundamento nos princípios estruturantes da Constituição, como a defesa do Estado e da ordem constitucional, o princípio federativo, a independência e harmonia entre Poderes, a garantia dos direitos fundamentais e outros.
Compete privativamente ao Presidente da sua decretação (art. 84, X), devendo seguir os ritos estabelecidos no art. 36, dependendo, em alguns casos, de solicitação do Legislativo ou do STF.
O decreto de intervenção deve especificar a amplitude, o prazo e as condições de execução da intervenção, e, quando for o caso, nomear o interventor, e deverá ser submetido à apreciação do Congresso Nacional no prazo de vinte e quatro horas. Cessado o motivo da intervenção, as autoridades afastadas de seus cargos a estes voltarão, salvo impedimento legal.
A um primeiro exame, a intervenção cogitada estaria fundamentada no inciso III do art. 34, ou seja, “grave comprometimento da ordem pública”, visto que as demais hipóteses não guardam correlação com os fatos narrados.
Surge, nesse caso, dúvida sobre se deveria ou não haver o afastamento do Governador. Contudo, embora a intervenção no Poder Executivo tenha por pressuposto a nomeação de um “interventor”, com plenos poderes, não há determinação expressa desse afastamento. Ainda que não haja, a “intervenção” no exercício de competências suas de direção superior da Administração Estadual revela um afastamento parcial dos poderes do Governador, que deriva da própria incapacidade desse agente político de gerir a crise que dá causa à intervenção.
Por outro lado, não seria indispensável, para que a União colabore com o Estado na superação da crise envolvendo a segurança pública, a própria intervenção.
Não há precedente formal de intervenção federal dessa espécie.
Em 2017, após especulações de que haveria intervenção federal no Espírito Santo, também por problemas envolvendo a segurança pública, a solução adotada foi a de um decreto do Governador em exercício (Decreto nº 113 – S, de 07 fevereiro de 2017) transferir o controle operacional dos órgãos de segurança pública para um general de brigada “Comandante da Força-Tarefa Conjunta, autoridade encarregada das operações das Forças Armadas, para a garantia da Lei e da Ordem no Estado do Espírito Santo”.
O Decreto foi fundamentado em disposições da Lei Complementar nº 97/1999, e a edição de decreto federal de 6 de fevereiro de 2017 autorizando o emprego das Forças Armadas “em decorrência da paralização das atividades dos policiais militares, acarretando insegurança e transtornos à população do Estado”.
Mas tal transferência se deu por um curto período (de 06 a 16 de fevereiro de 2017). No caso em comento, anuncia-se que a “intervenção” se daria até 31.12.2018. Esse prazo, evidentemente, poderia ser abreviado, caso superadas as causas ou motivações da intervenção, restaurando-se a “normalidade”, embora (dadas as causas da situação) nada indique que isso efetivamente virá a ocorrer.
O Decreto nº 9.288, editado em 16 de fevereiro de 0218 pelo Presidente da República acha-se assim redigido:
Art. 1º Fica decretada intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro até 31 de dezembro de 2018.
§ 1º A intervenção de que trata o caput se limita à área de segurança pública, conforme o disposto no Capítulo III do Título V da Constituição e no Título V da Constituição do Estado do Rio de Janeiro.
§ 2º O objetivo da intervenção é pôr termo a grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro.
Art. 2º Fica nomeado para o cargo de Interventor o General de Exército Walter Souza Braga Netto.
Parágrafo único. O cargo de Interventor é de natureza militar.
Art. 3º As atribuições do Interventor são aquelas previstas no art. 145 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro necessárias às ações de segurança pública, previstas no Título V da Constituição do Estado do Rio de Janeiro.
§ 1º O Interventor fica subordinado ao Presidente da República e não está sujeito às normas estaduais que conflitarem com as medidas necessárias à execução da intervenção.
§ 2º O Interventor poderá requisitar, se necessário, os recursos financeiros, tecnológicos, estruturais e humanos do Estado do Rio de Janeiro afetos ao objeto e necessários à consecução do objetivo da intervenção.
§ 3º O Interventor poderá requisitar a quaisquer órgãos, civis e militares, da administração pública federal, os meios necessários para consecução do objetivo da intervenção.
§ 4º As atribuições previstas no art. 145 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro que não tiverem relação direta ou indireta com a segurança pública permanecerão sob a titularidade do Governador do Estado do Rio de Janeiro.
§ 5º O Interventor, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, exercerá o controle operacional de todos os órgãos estaduais de segurança pública previstos no art. 144 da Constituição e no Título V da Constituição do Estado do Rio de Janeiro.
Art. 4º Poderão ser requisitados, durante o período da intervenção, os bens, serviços e servidores afetos às áreas da Secretaria de Estado de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro e do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro, para emprego nas ações de segurança pública determinadas pelo Interventor.
Como se percebe, o Decreto se fundamenta na autoridade do Presidente para a sua edição e justifica-se, quanto aos seus objetivos, na necessidade de “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro”, o que evidencia o seu fundamento no art. 34, III da CF. Fixa o seu prazo e delimita o seu campo “à área de segurança pública”, designa o interventor, sua subordinação ao Presidente da República e os meios para a sua atuação.
Decretada a intervenção federal nos termos do art. 34, III, e ainda pendente de apreciação pelo Congresso Nacional, daí decorrem imediatas consequências políticas, administrativas e jurídicas.
Nos termos do § 1º do art. 60 da CF, “a Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.”
Em qualquer das hipóteses, portanto, não pode ser emendada a Carta Magna.
O significado disso não está expresso na Constituição, mas pode ser extraído de interpretação lógica e sistemática.
Uma hipótese interpretativa seria a de que apenas a promulgação da PEC seria impedida, ou seja, as Casas legislativas não estariam impedidas de continuar discutindo a PEC; apenas a sua promulgação, que implica no seu efetivo ingresso na ordem jurídica, estaria impedida.
Trata-se, por óbvio, de uma aberração interpretativa, pois permitiria que, sob a pressão da intervenção, uma PEC fosse aprovada. O sentido da limitação, porém, é o de se evitar, precisamente, que o Congresso delibere em contexto de intervenção, em qualquer dos casos citados, produzindo norma constitucional que reflita a comoção social ou política que cerca a intervenção e os fatos que a justificaram.
Ao iniciar a sua tramitação, as PECs são submetidas a exame de sua admissibilidade. Via de regra, o parecer pela admissibilidade na Comissão e Constituição e Justiça e Cidadania manifesta-se sobre os requisitos estabelecidos no § 1º do art. 60. Exemplificando-se, o Parecer do Relator da PEC 287/2016 na CCJC assim se pronunciou:
“Não estão em vigor quaisquer das limitações circunstanciais à tramitação das propostas de emenda à Constituição expressas no § 1º do art. 60 da Constituição Federal, a saber: intervenção federal, estado de defesa ou estado de sítio. O País vive hoje um quadro de completa normalidade institucional e democracia florescente.”
Contudo, o Regimento Interno da Câmara dos Deputados é silente sobre isso. Ao referir-se sobre os requisitos de admissibilidade, o art. 201, II apenas menciona os seguintes:
“Art. 201. A Câmara apreciará proposta de emenda à Constituição:
………………………………….
II – desde que não se esteja na vigência de estado de defesa ou de estado de sítio e que não proponha a abolição da Federação, do voto direto, secreto, universal e periódico, da separação dos Poderes e dos direitos e garantias individuais.
……………………………………”
Já o Regimento Interno do Senado Federal faz menção, no § 2º do art. 354, às mesmas restrições para o emendamento fixadas pelo art. 60, § 1º da CF, sem adentrar em detalhes.
A práxis legislativa, portanto, é mais sábia do que a letra fria do Regimento, e atende ao espírito da Constituição, que não distingue entre as situações referidas no § 1º do art. 60, para os seus efeitos.
Dessa forma, se não se admite o início da tramitação da PEC (admissibilidade) na vigência de intervenção federal, o mesmo vale para todas as etapas subsequentes que implicam o exame do mérito, seja na Comissão Especial na Câmara dos Deputados, seja na CCJC ou no Plenário do Senado, pois o pressuposto para a apreciação de PEC é a normalidade das instituições político-administrativas, ou seja, que o sistema federativo e os poderes estejam em pleno funcionamento.
O próprio Presidente Michel Temer o reconhece, ao dizer em sua festejada obra “Elementos de Direito Constitucional”:
“O constituinte esteve atento ao fato de que a reforma constitucional é matéria de relevância inquestionável e, por isso, não pode ocorrer em instante de conturbação nacional. O constituinte exige serenidade, equilíbrio, a fim de que a produção constitucional derive do bom senso e da apurada meditação.” (TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 19 ed. rev. e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2004.)
Caso haja a persistência do Presidente da Câmara dos Deputados em pautar a matéria, de forma a obrigar os parlamentares a deliberarem sobre ela uma vez aprovada pelo Congresso a intervenção federal decretada, caberá mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal a ser ajuizado pelos parlamentares para proteger direito líquido e certo à observância da limitação constitucional.
Dessa forma, a PEC nº287 não somente não pode continuar a ser apreciada enquanto vigorar a intervenção, como qualquer ato relativo a qualquer outra PEC, mesmo que já aprovada e aguardando promulgação, poderá ser praticado, por ser absoluto o impedimento do art. 60, § 1º, que prejudica o prosseguimento de qualquer das fases do processo legislativo que produza o emendamento constitucional, pois a “emenda constitucional”, promulgada, nada mais é do que o resultado de um complexo processo legislativo, orientado pela rigidez que atende à necessidade de que somente uma vontade firme, sólida e livre do Legislativo é capaz de produzi-la legitimamente.
Quanto ao decreto de intervenção, a sua aprovação pelo Congresso implica em autorização, no reconhecimento da validade jurídica da situação que se pretende solucionar e sua gravidade, e fixa a amplitude, o prazo e as condições de execução. Presente o término do prazo, ou das razões que a determinaram, exaure-se a intervenção, e, com isso, a PEC poderia voltar a ser apreciada, pelo pressuposto de que se restaurou a normalidade.
Autoridades do Poder Legislativo e o próprio Presidente da República declararam que não haveria impedimento à continuidade da discussão da PEC 287/2016, e que poderia haver a suspensão da intervenção, para viabilizar a sua votação. Disse o Presidente em pronunciamento ao assinar o Decreto:
“A continuidade da tramitação da reforma da Previdência, que é uma medida extremamente importante para o futuro do país, quando ela estiver para ser votada, naturalmente isso segundo avaliação das casas legislativas, eu farei cessar a intervenção”, afirmou Temer.
A “cessação” da intervenção não é, conduto, ato discricionário do Presidente.
Pela sua natureza, não cabe falar em “suspensão” da intervenção, mas no seu término, nas condições previstas no próprio decreto, ou seja, o seu prazo, ou, ainda, se “cessados os motivos da intervenção”. A decretação de nova intervenção deverá seguir o mesmo rito da intervenção original, e produzirá os mesmos efeitos.
Note-se que, segundo declaração do Governador do Estado, a solicitação dirigida ao Governo Federal foi a de um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (similar ao do caso antes citado, do Espírito Santo), mas a decisão pela intervenção foi tomada pelo Presidente:
“Eu pedi ao Temer uma GLO ampliada, na qual pudéssemos ter mais recursos das Forças Armadas e, aí, chegou-se à conclusão, com Jungmann e Etchegoyen, que, para ter essa ampliação, eles tinham que ter o comando das forças de segurança, e eu aceitei prontamente”.
Assim, se a situação é de tamanha gravidade que justifica o afastamento do Governador da gestão de área sensível, estratégica e essencial de seu Governo, não cabe falar em “suspensão” da intervenção para viabilizar a votação de uma PÈC cuja tramitação, de imediato, se acha suspensa, não sendo cabível sequer que seja pautada para fins de discussão pelo Presidente da Câmara dos Deputados. A “suspensão” do decreto de intervenção (ou sua revogação) estará evidenciando, sem que a situação tenha sido equacionada, desvio de finalidade ou desvio de Poder do Chefe do Poder Executivo, o que configura crime de responsabiliadde, nos termos do art. 6º, item 8[1] e do art. 9º, item 4[2] da Lei nº 1.079, de 10de abril de 1950, que define os crimes de responsabilidade.
Tratando-se, como confirmado pela sua assinatura, de decreto de intervenção federal com fundamento no art. 34, III da Constituição, não há como prosperar a PEC 287/2016, enquanto vigorar tal intervenção. Qualquer ação política que contrarie esse entendimento deverá ser de pronto submetida ao Supremo Tribunal Federal pelos autores legitimados.
[1] Art. 6º São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados: (…) 8 – intervir em negócios peculiares aos Estados ou aos Municípios com desobediência às normas constitucionais.
[2] Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração: (…) 4 – expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição;
* Advogado, mestre em Administração e doutor em Ciências Sociais. Ex-Subchefe da Casa Civil (2003-2014) e consultor legislativo do Senado Federal.
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