Exmº Sr. Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski; Exmº Sr. Presidente do Senado Federal, Renan Calheiros; Srªs e Srs. Senadores; querido amigo e ex-adverso Prof. Miguel Reale Júnior; demais membros da Defesa; senhoras e senhores, a Constituição Federal de 1988, no seu art. 1º, afirma textualmente que o Brasil é um Estado Democrático de Direito. E ao assim fazê-lo, deixa claro que nós vivemos sob o império da lei ao mesmo tempo em que vivemos sob o império da democracia.
Esta mesma Constituição, não por decisão dos próprios Constituintes, mas por uma consulta feita por meio de plebiscito ao povo, adotou o sistema presidencialista de governo. Ao assim fazer, adotou a matriz da constituição norte-americana, onde o chefe de estado e o chefe de governo estão reunidos numa única pessoa.
E exatamente por isso, ao contrário do que efetivamente acontece nos regimes parlamentares, um Presidente da República não pode ser afastado por razões puramente políticas. Ele não pode ser afastado, ao contrário do que nos quer fazer crer a acusação, pelo conjunto da obra. Quem afasta um presidente pelo conjunto da obra é o povo, nas eleições.
No Presidencialismo, é necessário que existam pressupostos jurídicos somados a uma avaliação política para que um presidente da República possa ser afastado. Essa é a matriz da Constituição norte-americana de 1787. Se formos a ela, veremos que um presidente da República, lá nos Estados Unidos da América, só pode ser afastado no caso, diz a Constituição, de righ crimes – traduzindo, crimes gravíssimos. A Constituição brasileira adota o mesmo pressuposto. Diz que um Presidente da República só pode ser afastado nos casos em que há um atentado à Constituição, em que há um ato presidencial que atente contra a Constituição. Ou seja, os nossos high crimes são chamados de crime de responsabilidade e exigem a demonstração por meio de um processo. Por isso existe um processo.
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Se fosse um afastamento político, não seria necessário um processo, não seriam necessárias provas. Se fosse um julgamento pelo conjunto da obra, far-se-ia um debate político e não um debate da análise e pressupostos de fato e de direito, que são exigidos para um afastamento presidencial. Por isso existe, repito, então, o processo do impeachment, para que se provem as acusações.
E eu quero afirmar, em nome da Senhora Presidente da República, Srs. Senadores e Srªs Senadoras, que se eu tivesse alguma dúvida do que o que se pretende aqui é um afastamento político, bastaria ouvir o discurso do meu ex adverso para ter a absoluta certeza de que não existem acusações comprovadas nesses autos.
PublicidadeS. Exª o Prof. Miguel Reale Júnior não analisou nada das provas produzidas nos autos. Fez referências genéricas. E por que o fez? Porque se o fizesse teria que cair numa situação de demonstrar que todas as provas produzidas, todas acabam demonstrando a inocência da Senhora Presidente da República em relação aos fatos. Por isso S. Exª teve que falar de situações que estão fora do processo. Sugeriu que o Presidente Eduardo Cunha não incluiu outros fatos em benefício próprio, esquecendo-se da regra do art. 86, § 4º da Constituição Federal, que é expressa, literalmente clara ao afirmar que um Presidente da República não pode ser responsabilizado por fatos que efetivamente não ocorram no exercício do seu mandato e que, segundo jurisprudência dominante, jamais podem ser invocadas num processo de impeachment.
E todos os fatos invocados pelos acusadores estavam fora do mandato da Presidente da República. Eduardo Cunha sabia disso, e por isso abriu o processo em relação a duas acusações que foram muito pouco referidas pelo meu ex adverso. Acusou que foram firmados decretos de abertura de créditos suplementares. Eram seis, na origem. Hoje, pelo relatório do Anastasia, são três, Afirmou que houve atrasos no pagamento das subvenções do Plano Safra, em 2015.
Esses são os fatos em discussão no processo. O resto podemos discutir, falar, debater, mas deve-se provar essas acusações. Num processo se discute, se prova, se demonstra a procedência ou improcedência do objeto da acusação e não do conjunto da obra, e não de outros fatos. Isso é uma apreciação política que se pode fazer. Mas, uma vez demonstrados os fatos, esse é o objeto do processo. Quando um acusador foge desse debate é porque seguramente algo está frágil no seu raciocínio, na sua acusação.
E o Prof. Miguel Reale Júnior é um dos melhores penalistas do Brasil. Por que ele fugiu desse debate? Porque não poderia enfrentá-lo.
O Senador Anastasia o enfrentou no relatório, mas o fez, sinceramente, dominado – como já disse – pela paixão partidária. S. Exª… E basta ler o relatório. E sei que V. Exªs o leram. Basta ler o relatório, para ver que o nobre Relator trunca testemunhas, cita pareceres da AGU que não dizem o que ele diz que citam… E até, Presidente Lewandowski, o meu querido e saudoso Hely Lopes Meirelles é lembrado, pelo Relator, modificando-se o que ele diz. Reproduz-se um texto e se conclui outra coisa, que ele não fala.
Teve o seu Relator, para seguir a paixão partidária, que construir provas que não existiam. O Ministro Adams foi citado pelo Sr. Relator, cortando-se uma parte do depoimento, quando ele fala que só falou com a Presidente da República, sobre o caso das pedaladas, depois do julgamento do Tribunal de Contas. A Srª Esther Dweck também foi mencionada, cortando-se, para que se descontextualizasse a afirmação. Não havia provas.
Portanto, o Senador Anastasia não produziu um relatório de julgamento. Foi um relatório de acusação, nos moldes da Santa Inquisição. Com a devida vênia, Senador Anastasia, V. Exª agiu como um Torquemada, pinçando provas, dando aparência de legitimação a uma situação que, efetivamente, não remonta à clareza e à evidência das provas que estão ali colocadas. Quem assistiu às reuniões da Comissão Especial sabe do que eu estou dizendo. Nenhuma prova foi produzida para aprovar nenhuma das duas acusações.
Mas a Defesa não teme o debate: vamos às duas acusações. Não ao resto, senhores membros da Acusação. O resto nós debatemos nas urnas, nos palanques. Vamos às acusações, que são as razões que são invocadas, no presidencialismo, para um afastamento da Senhora Presidente da República. Primeira acusação: três decretos de abertura de crédito suplementar. Qual é a tese? Já que a Acusação não expõe, eu exponho. A tese é a seguinte: quando foram abertos esses decretos de crédito suplementar, aumentou-se o crédito do Orçamento. E, segundo a Acusação, não havia base legal para que esses decretos fossem abertos. Por que não havia? Embora o art. 4º, da Lei Orçamentária Anual, dissesse que é possível baixar os decretos, esse art. 4º exigia uma compatibilidade entre os decretos e a meta fiscal. Diz a Acusação que não havia essa compatibilidade, porque a meta fiscal, no momento em que os decretos foram baixados, em julho e agosto de 2015, não estava sendo atendida, segundo demonstram os relatórios bimestrais. Ou seja, a meta não estava sendo alcançada.
Há dois equívocos claros, evidentes, nesse raciocínio. O primeiro erro: a meta fiscal, de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal, art. 4º, é anual. Anual. Os relatórios são feitos para que se tomem medidas, a fim de que a meta seja assegurada. Os decretos foram baixados, Presidente Lewandowski, Presidente Renan, em julho e agosto. A meta teria que ser verificada no final do ano. É o que diz a lei. É textual. É clara. É indiscutível. No entanto, dizem “não, mas naquele momento estava se descumprindo a meta.” Como se descumpre uma meta, se ela é anual? Em julho e agosto? Teria que ser descumprida em dezembro. Seria a mesma coisa que se eu dissesse: “Olha, eu vou economizar num ano R$120 mil e vou guardar R$10 mil por mês.” Aí, em junho ou julho, eu falo: “Puxa, eu acumulei menos que R$60 mil. Vou ter que, nos próximos meses, tomar medidas para chegar aos R$120 mil.” Eu não posso dizer que, em julho e em junho, eu descumpri a meta. Eu não posso, porque a meta é anual. Os meus R$120 mil? É em dezembro que eu tenho que verificar se eu os tenho.
Eu posso enxugar mais, apertar mais, mas não posso, efetivamente, dizer que descumpri a meta; logo, os decretos não foram baixados no momento em que a meta foi descumprida. Mais que isso, antes que a meta fosse descumprida, o governo encaminhou um projeto de lei para o Congresso Nacional, que mudou as metas antes do seu descumprimento, com o voto da maioria dos Srs. Senadores e Srs. Deputados. Nunca houve o descumprimento da meta, não havia no momento em que os decretos foram baixados, no entanto, esse raciocínio é sustentado pela Acusação.
Mas o que é pior? O que é uma meta fiscal? Meta fiscal é aquela que trata do quanto se gasta. Afirmo, e isso está provado pela Perícia – que disse o Prof. Miguel Reale que é inútil –, que esses decretos, no todo, não geraram um centavo a mais. Como se pode entender que esses decretos que não geraram um centavo a mais feriram a meta? Por quê? Porque esses decretos foram contingenciados, previsão do art. 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal. Feitos os decretos, havia o contingenciamento, se congelavam gastos, então, eles não gastaram a mais.
Está provado! O Senador Anastasia tinha que enfrentar esse problema. E ele enfrentou de que forma? Ele criou um conceito criativo, mais criativo que a contabilidade, que é o conceito da meta fiscal e orçamentária. A lei fala em meta fiscal, desembolso, gasto, mas o Senador Anastasia disse que: “Olha, a meta tem que ser orçamentária e fiscal, mesmo que do fiscal não seja atingido, prejudicado, o orçamento tem que ser compatível.”
Senador Anastasia, todos sabem que um orçamento não tem, por definição, todas as verbas que devem constar nos seus respetivos créditos e débitos. Em relação às receitas, porque não sabe, mas há certos créditos que não estão no Orçamento. Por exemplo, restos a pagar não estão no orçamento, não podem estar. Outros créditos que a Constituição coloca, que independem de afirmação orçamentária, também não estão. Dentro da lógica que V. Exª desenvolve da meta orçamentária, o orçamento já aprovado fora da meta não tem cabimento. A meta é fiscal, não é orçamentária. Para evitar que o orçamento prejudique a meta fiscal, eu contingencio. Esse foi o entendimento que dominou desde a entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal até 2015.
Subitamente, o Tribunal de Contas da União disse: “Não, não, não, não é assim, tem que haver essa meta orçamentária.” Nunca foi assim, todos se assustaram, e as testemunhas todas falaram isso. Muito bem, mudou-se o entendimento.
Depois da mudança de entendimento, o governo não baixou mais esses decretos, mas aí se disse: “Não, vamos punir para o passado.” Como? “Vamos punir para o passado.” Punir para o passado quando a regra era outra? “Não deviam ter ignorado o conhecimento da lei?” Como? Na pior das hipóteses, existe uma interpretação divergente: a interpretação do Tribunal de Contas da União, depois de 2015, e a de todos os juristas, de todos os técnicos da AGU, do resto do mundo, antes. “Não, mas vamos seguir a opinião do TCU, essa é a única que vale, o resto não conta.” Não conta retroativamente. É correto, senhores? É correto, Srªs Senadoras, alguém ser punido por um ato que praticou no momento em que as coisas era tidas como válidas? É adequado?
Faço questão de citar, como já citei na Comissão, textualmente, uma frase do querido jurista mineiro Antonio Anastasia. S. Exª já escreveu:
Em um Estado de Direito, são normais e necessárias tanto as alterações nas regras como a atuação dos órgãos de controle público. Mas o ambiente institucional tem de ser capaz de conciliar as mudanças e controles com o valor da segurança jurídica, evitando que pessoas e organizações vivam em permanente risco e instabilidade. Em nosso país, temos falhado quanto a isso.
Essa é a opinião de Antonio Anastasia fora desse processo: que o Tribunal de Contas não poderia ter feito o que fez, punindo retroativamente. Poderia até mudar, mas não afetar a segurança jurídica do passado. Não poderia tê-lo feito. No entanto, cego pela paixão partidária, o Relator Anastasia segue essa linha e diz: “Não, o Tribunal de Contas não mudou de opinião, não. Não mudou, não. É que ele nunca tinha examinado isso antes. De repente, acordou, resolveu examinar e aí resolveu punir para o passado.”
Muito que bem. Nunca examinou, Senador Anastasia? Nas nossas alegações finais, está a prova de que examinou. Em 2001, no governo Fernando Henrique Cardoso, que baixou decretos exatamente iguais àqueles baixados pela Presidenta Dilma Rousseff, exatamente iguais, o Tribunal se refere a eles, dizendo: “Olha, temos que melhorar o planejamento.” E não rejeita as contas.
Em todos os pareceres de contas, existe um quadro em que se analisam os créditos suplementares. Todos, e V. Exª viu isso. Todos. E falam: “Olha, foi gasto mais que o orçamento tanto”, e o Tribunal nunca rejeitou. Nunca examinou? Examinou, sim. Examinou, sim! Está textual, está provado. O problema é que mudou de opinião. Tanto mudou de opinião que, antes, nunca, nenhum Parlamentar – nem Deputado, nem Senador – chegou a apresentar um projeto de decreto legislativo para sustar esses decretos.
Por que não o fez? Dormiam todos? O Tribunal dormia, os Senadores dormiam, os Deputados dormiam, e, de repente, todos acordaram? Não! Acordaram em 2015 para punir o passado, o retroativo. Por quê? Por razões eminentemente políticas. Querem afastar a Senhora Presidente da República a qualquer preço, mesmo diante daquilo que efetivamente não se afirma e não se coloca no conjunto probatório produzido nos autos.
Também quero observar a V. Exªs que, na tentativa de demonstrar que os decretos geraram algum gasto, embora entendendo que isso não era necessário – ele até diz “em homenagem à Defesa”, porque acho que o mero descompasso formal entre o Orçamento e a meta já leva a uma barbaridade, a um crime. Descompasso formal, não real. E diz: “Não, mas os decretos implicaram, sim, implicaram, sim, gastos.” E junta à p. 102 do relatório o Senador Anastasia uma tabela, uma tabela dada pela SOF do Governo Federal. Essa tabela soma tudo aquilo que foi remanejado financeiramente pelos decretos. Ele diz: “Está vendo? Olha o valor.”
Senador Anastasia, essa tabela, conforme a própria Perícia esclareceu, ela não serve para os fins que V. Exª proclama, porque junta situações inclusive de anulação de rubricas. Quando eu tenho uma e anulo outra, isso não conta para efeito de acréscimo de crédito. Quando eu tenho operações financeiras, elas também são neutras, não contam, e V. Exª diz isso no relatório, mas usou essa tabela para demonstrar o que efetivamente não cabe. E, hoje, da tribuna, disse: “Não, mas há efetivamente alguns momentos, e a própria Defesa reconhece, em que houve gasto a maior.” Sim, mas, na soma, os decretos não implicaram nenhum centavo a mais. Na soma dos três decretos.
Portanto, não há como dizer que a meta fiscal foi atingida por esses decretos, como também não há como dizer que uma mera inadequação formal, que não existia porque a meta é anual… Mas, imaginando que existisse uma inadequação formal, seria de uma tal gravidade, uma tal hediondez, que nós teríamos um high crime aqui configurado com esse crime de responsabilidade. Ou seja, senhores, isso é um pretexto.
O mesmo pretexto se coloca no caso das pedaladas, se me permitem dizer. E aqui faço minhas as palavras da minha querida amiga Senadora Rose de Freitas, que disse: “A Presidente da República não está sendo afastada, não, pelas tais das pedaladas”, e ali do Governo. A Senadora Rose de Freitas disse assim: “Não está sendo afastada por isso, está sendo afastada por outras razões”, que ela até entende, defende e votou favoravelmente, mas por isso não. “Eu fui Presidente da Comissão de Orçamento”, disse ela, “esse negócio das pedaladas não qualifica efetivamente uma justa causa para o afastamento da Presidente da República.” A Líder do Governo diz isso e fala o que é defesa disso.
Realmente, esse caso das pedaladas fiscais, das chamadas pedaladas fiscais, caracteriza algo completamente absurdo. Por quê? Se afirma que aquilo que sempre fez, que todos os governos sempre fizeram, em valores maiores ou menores, quando atrasam o repasse de subvenções, qualificariam operações de crédito, operações de crédito proibidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Senhores, como pode um vínculo, que não é de operação de crédito, pela inadimplência, transformar-se em uma operação de crédito? É, então, um vínculo jurídico mutante: ele nasce uma coisa e se transforma, pela inadimplência, em outra? A Lei de Responsabilidade Fiscal proíbe, sim, operações de crédito e diz o que se assemelha à operação de crédito no art. 29. E todos são contratos.
No caso do Plano Safra não existe um contrato entre a Administração e o Banco do Brasil. Existe uma afirmação legal. Mas, mesmo assim, mesmo que existisse um contrato, que contrato pactuado entre a União e o Banco do Brasil houve de operação de crédito? Nenhum. O Banco do Brasil concordou em atrasos? Não. Então, não há contrato, não há vontades recíprocas. E isso é contrato unilateral? Isso é operação de crédito unilateral? A tese é totalmente infundada, e quem o disse não sou eu, são os maiores especialistas do País, de quem nós juntamos, nos autos, os pareceres, como a Profª Misabel Derzi e o Prof. Heleno Torres, que dizem: não, a Lei de Responsabilidade Fiscal não foi ferida por isso. Mas o Tribunal de Contas da União diz que sim. E o Tribunal de Contas também acordou, em um certo momento, porque isso era sempre feito e ele resolveu dizer que isso efetivamente era uma operação de crédito proibida.
A partir do momento em que o Tribunal de Contas disse isso definitivamente, no momento em que a Presidente da República foi vinculada pela decisão, ela falou: “Não, está bem. Vamos pagar tudo, fazemos isso.” Discordo, porque todos sempre discordaram: “Não, não, vamos punir também o passado. Vamos punir o passado. O passado é o passado. A senhora devia saber que era assim.”
Mas o que é mais curioso é que essa é uma operação de crédito que reconhecidamente não tem prazo fixado. Vocês já viram isto: operação de crédito que não tem prazo fixado? Não tem. Tanto que o Senador Anastasia, para tentar justificar que é uma operação de crédito, fez uma construção brilhante e criou um prazo, com todas as vênias, “anastasiano”; um prazo que não existia. Mas ele fez uma construção hermenêutica impressionante. Ele pegou as operações constitucionais…Perdão, as obrigações constitucionais do Código Civil, que não têm nenhuma aplicabilidade ao caso, e disse, então, que se aplica esse artigo do Código Civil. Ele pegou decretos e portarias da Presidente da República, depois da decisão do Tribunal de Contas, para dizer que a Presidenta pressupôs, então, um prazo, que esse prazo era racional e, então, ele era aplicável. Ou seja, ele construiu um prazo retroativo que não foi combinado pelas partes para uma operação de crédito. É fantástico! Eu nunca vi isso. Uma operação de crédito que não é contrato, que não tem prazo e que a posteriori se cria por força de uma situação regulamentatória posterior.
Mas aí, mesmo aplicando o seu prazo, o Senador Anastasia se viu em um problema. Qual era o problema? Ele, ao verificar em 2015, viu que só tinha quatro meses de atraso e que o valor era bem menor do que o apregoado. Então, o que ele fez? Para efeito de um discurso político, pela paixão partidária, ele disse também que devem fazer parte da acusação todos os valores não pagos do Plano Safra desde 2008, quando a Presidente da República nem era Presidente.
Uma acusação que nunca havia sido feita antes. E, por isso, ele pede a mudança da tipificação, dizendo: “Não, isso é uma emendatio libelli. É só uma adequação.”
Não! Ele inclui uma nova acusação. Ele inclui que a Presidente da República não pagou desde 2008, e tinha que tê-lo pago em 1º de janeiro, porque, se passasse de 1º de janeiro e fosse pago no dia 2, já teria cometido crime de responsabilidade. E os outros não cometeram. É só a Presidente Dilma Rousseff, nem no primeiro mandato. É no segundo.
É claro que isso é uma mutatio libelli, uma alteração no libelo com a inclusão de uma nova acusação que trará nulidade a esta decisão de pronúncia hoje, se for confirmada.
A Presidência, através de seu advogado, apenas adverte que há uma mutatio libelli que inquina de invalidade absoluta esta decisão. Apenas arguo isso para conhecimento de V. Exªs.
Se assim é, e não há ilegalidade nos dois casos, há que se dizer que, nas pedaladas fiscais, não há nem ato. Até hoje a Acusação não definiu se é ato omissivo ou comissivo, joga duplo, o que no Direito Penal não se admite.
Dizem que há ato comissivo porque a Presidente participou de reuniões, porque o Arno Augustin, que nem em 2015 era Secretário do Tesouro, conversava com ela, mas não sabem dizer qual a reunião nem onde, porque não houve.
Por lei, quem tem que cuidar do Plano Safra não é a Presidente da República. É o Ministro da Fazenda. Por isso essas questões não chegavam à Presidência da República. Essas questões não chegavam à Senhora Presidente. Não foi ela quem decidiu o atraso de quatro meses. Não! Isso é de gestão do Ministério da Fazenda e de outros ministérios. Onde está o ato da Senhora Presidente da República?
O Senador Anastasia tenta salvar e fala: “Não, é ato omissivo. Ela se omitiu.” Mas se omitiu em relação a que dever? “Porque ela tem o dever de governar o País.” Ah, é? Então, qualquer coisa que ocorra no País em relação a Direito Financeiro, como disse o Senador Anastasia, o Presidente tem de ser imputado? Cuidado, chefes de poderes! Cuidado, Presidente Lewandowski! Cuidado, Presidente Renan! Cuidado, governadores! Cuidado, prefeitos! Porque qualquer coisa que o ordenador de despesa fizer lá embaixo, o senhor pode tomar impeachment. Esta é a tese do Senador Anastasia, de que o Presidente é responsável por todas as regras de Direito Financeiro. Como assim? Ele é responsável por aquilo que a lei lhe imputa! E dá o exemplo: “Não, é omissivo.” Fala da mãe que deixa um filho morrer de fome. Diz: “Olha, a mãe pode matar um filho por omissão. É só não dar alimento a ele.” Bom exemplo, Senador Anastasia, até porque essa mãe pode não ter a guarda da criança. Essa mãe pode ter deixado o filho numa creche. Se isso acontecer, ela é a responsável? Se é o pai que não alimenta porque ela não tinha a guarda, é ela a responsável? Se ela deixa numa creche, e a creche não alimenta, é ela a responsável? Essa é a tese de V. Exª com a Presidente da República. A guarda dessa questão não estava com a Presidenta; estava com o Ministério da Fazenda. E, mesmo que ilegalmente fosse firmada qualquer situação, a criança que morreu de fome não teve, segundo prova dos autos, da perícia e de tudo, qualquer intervenção possível e factível da Presidente da República. Não há nenhuma prova efetiva de que a Senhora Presidente da República teve ciência disso.
Aliás, cito aqui um ilustre jurista, o Prof. Miguel Reale Junior, que, na sua obra Estrutura do Direito. Crime de Resultado Material, disse:
O imperativo legal de evitar o resultado, graças ao qual a omissão se faz relevante, não se estende genericamente, mas possui destinatário próprio, aquele ao qual juridicamente cabe impedir o evento.
A Presidente da República não tinha essa competência, Prof. Miguel Reale.
Também ele diz:
O agente age com dolo se conhece a situação em razão da qual deveria agir e decide ou não fazer, apesar de possível.
Onde está a prova da ciência da Presidenta no atraso de quatro meses, segundo o Senador Anastasia, num prazo que ele criou? Não há! Não ato, não há dolo, não há nada!
As provas são fatais, arrasadoras. E daí somente a uma conclusão se pode chegar, Sr. Presidente: querem utilizar pretextos para afastar a Senhora Presidente da República por razões políticas, e a Constituição não comporta pretextos – no presidencialismo, não. No parlamentarismo, afasta-se por razões políticas. Não se afasta ninguém no presidencialismo por perda de maioria parlamentar.
Isso nos faz observar, portanto, que, neste caso, quando se afirma que o afastamento da Senhora Presidenta Dilma Rousseff implica uma ruptura institucional, um golpe, está-se afirmando isso com a mais absoluta convicção de que a Constituição está sendo desrespeitada, porque um Presidente legitimamente eleito, uma Presidenta legitimamente eleita está sendo afastada sem os fatos e os pressupostos exigidos para que isso ocorresse. É, sim, uma violência à Constituição – permitam-me dizer com franqueza. É, sim!
Ah, mas há processo, há rito. Quantas injustiças na humanidade foram cometidas com processos, com rito? Os processos de Moscou? Sacco e Vanzetti? Quantos os senhores querem que eu cite em que os ritos processuais foram respeitados, mas a violência foi praticada, porque os juízes seguiram os ritos, mas não a substância? Não há forma sem substância. Não há processo legítimo só com rito, com acusações como essa. Não há processo legítimo; há ruptura constitucional, há ofensa institucional, há desrespeito democrático aos eleitores de Dilma Rousseff.
É por isso que o mundo todo hoje, desde o intelectual como Habermas a Senadores franceses, a Parlamentares americanos, a candidatos americanos que disputaram as eleições, diz: “Cuidado com o que está acontecendo no Brasil. A institucionalidade está sendo desrespeitada.” O mundo inteiro percebe isso, que é, na verdade, um pretexto que se está utilizando para afastar a Presidenta da República.
E por que um pretexto? Uniram-se duas confluências, e por isso nós defendemos o desvio de poder nesse processo que o vicia. Uniram-se aqueles que não gostaram do resultado das eleições de 2014 e que, desde o instante seguinte, pediam recontagem de votos, faziam o possível para que não se pudesse legitimar o mandato da Senhora Presidenta da República àqueles que ficaram incomodados com a liberdade e com a autonomia que a Senhora Presidenta da República dava à Lava Jato. Uniram-se os descontentes com a eleição aos descontentes da investigação e, a partir daí, encarnados na figura de Eduardo Cunha, desestabilizaram o governo para agravar a crise e perpetrar a violência constitucional.
Todos nós vimos isso. Isso é notório. Não há que se esconder. É isso que aconteceu. O governo foi desestabilizado por aqueles que não se conformaram com o resultado das urnas e por aqueles que não gostavam da Lava Jato. Os áudios demonstram isso, as atitudes demonstram isso, as notícias da imprensa demonstram isso.
E querem os senhores dizer que estamos diante de um processo legítimo de afastamento da Senhora Presidenta da República? Não, Srs. Deputados, nós não estamos.
Eu diria que nunca imaginei, como advogado, ao longo da minha vida, que tivesse que viver este momento, um momento após 1988 em que coubesse a mim a incumbência de lutar por um mandato e pela democracia.
Eu me orgulho disso. Muitos têm dito: “O que você ganha com isso?” Eu ganho a minha paz na consciência, eu ganho a afirmação de que estou lutando sempre do mesmo lado. Eu ganho pela afirmação de que não sou hipócrita nem desleal com meus princípios. Eu ganho pela afirmação de que traições e deslealdades não competem àqueles que efetivamente lutam por causas.
Não penso em carreira nem penso efetivamente em nada que não seja a defesa de princípios que eu sempre defendi: a democracia, o Estado de direito, o respeito ao povo brasileiro. É isso que me move.
Até porque, amanhã ou depois, quando a história virar essa página e alguém, seja algum dos meus filhos, seja algum dos meus netos, me perguntar: “Onde você estava naquele momento?” Eu direi: “Eu era advogado.” Eles dirão: “Por quem você advogava?” E eu mostrarei: eu defendi a democracia e a soberania popular.
Eles dirão para mim: “Pai, ou avô, se é assim, você estava do lado certo da história”.
Eu gostaria que todos os Srs. Senadores e Senadoras que juraram nesta tribuna o respeito à Constituição de fato a respeitassem. E, neste caso, a única forma de respeito possível e factível é a absolvição de uma Presidenta da República injustamente acusada nesses autos, que poderá ser condenada sem provas, perpetrando-se uma violência contra o Estado democrático de direito, contra a democracia e contra o valor maior da Justiça. Que se vote pela Justiça, é o que manda a Constituição, é o que mandam os princípios que devem nos reger.
Muito obrigado.”
Dilma vira ré em processo de impeachment