Luiz Flávio Gomes *
Constitui crime, consoante a Lei 12.737/12 (art. 154-A), “invadir dispositivo informático alheio (…) com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo (…) ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita”.
Em debate promovido na Fecomercio-SP, mês passado, sob a coordenação de Renato Opice Blum e Rony Vainzof, tive a oportunidade de externar meu pessimismo em relação à eficácia penal da lei acima referida. A crença de que a lei penal possa ter efeito preventivo está cada vez mais discutida. Ninguém concordaria com a ausência de tutela da nossa privacidade, intimidade; lei tem que existir para nos proteger. O problemático é esperar que isso seja feito pela lei penal. Eu, particularmente, confio mais em medidas civis (determinadas por juiz civil, como remoção de uma notícia ofensiva). Confio mais em indenizações.
Quem conhece minimamente o funcionamento da Justiça criminal no Brasil não pode se iludir: ela está, em geral, sucateada. Porque sucateada está a polícia civil (investigativa), que conta com incontáveis cadáveres nas suas portas, o que já é suficiente para sugar todos os seus recursos materiais e pessoais. Medidas civis urgentes são mais eficazes nessa área. De qualquer modo, houve intenção de se suprir uma lacuna no Brasil. O relator do projeto, deputado Paulo Teixeira, procurou fazer o melhor texto, mas todo conjunto de palavras permite mil interpretações. Numa rápida olhada, assinalei 104 conceitos dados pela lei, todos dependentes de interpretação. As penas são baixas (em regra, até dois anos), logo, a chance de prescrição é muito grande. Por todos esses motivos, não confio na eficácia preventiva dessa lei. A tutela civil teria condições de ser mais eficiente.
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Extimidade
Na interpretação e aplicação dessa lei os operadores jurídicos devem atentar para o fenômeno da extimidade, que pode constituir uma forma de autorização tácita da quebra do sigilo das nossas intimidades (dos nossos segredos). “Teu segredo é teu prisioneiro. Uma vez libertado, volta contra ti e te aprisiona” (provérbio oriental).
Extimidade é o contrário de intimidade. É lançar ao público, sobretudo por meio das redes sociais, algo que pertence à nossa privacidade. Como bem pondera Bauman (em La Repubblica, de 09.04.11, tradução de Moisés Sbardelotto), “os relacionamentos humanos devem ter mudado em notável medida e de modo particularmente drástico nestes últimos 30-40 anos”. Modificaram-se a tal ponto que, conforme hipótese levantada pelo psiquiatra e psicanalista Serge Tisseron, as relações consideradas como “significativas” passaram da “intimité” à “extimité”, isto é, da intimidade ao que ele chama de “extimidade”. (…)”
“Analogamente a outras categorias de bens pessoais, de fato, o segredo é, por definição, aquela parte do conhecimento cujo compartilhamento com os outros é rejeitado ou proibido e/ou estritamente controlado. O segredo, por assim dizer, caracteriza e contra-distingue os limites da privacidade, sendo esta última a esfera destinada a ser própria, o território da própria soberania indivisa, dentro do qual tem-se o poder total e indivisível de decidir “o que sou e quem sou” e partir da qual podem ser lançadas e relançadas as campanhas para fazer com que sejam reconhecidas e respeitadas as próprias decisões e mantê-las como tais” (Bauman).
No mundo mais flexível e transitório das redes sociais, o que há de mais frequente é a exteriorização das intimidades. Nos tornamos, na era comunicacional, o oposto do que se admitia como padrão de conduta, antigamente. Nossos avós, certamente, eram muito mais recatados.
“Em uma surpreendente inversão com relação aos hábitos dos nossos antepassados – continua Bauman -, porém, perdemos a coragem, a energia e principalmente a vontade de persistir na defesa desses direitos, daqueles insubstituíveis elementos constitutivos da autonomia individual. Aquilo que nos assusta hoje não é tanto a possibilidade da traição ou da violação da privacidade, mas sim o seu oposto, isto é, a perspectiva de que todas as vias de saída possam ser bloqueadas”.
O que está mudando? Nós já não queremos apenas “ser”, não queremos somente “ser”: depois das redes sociais e particularmente do Facebook, muito querem “ser aparecidos” (expostos ao público). Quem não aparece não existe. O tormentoso, assim, já não é a divulgação (para muitos) dos seus segredos, sim, a não divulgação deles.
Uma coisa é usar as redes sociais para instruir, para educar, para transmitir ideias, para debater temas polêmicos, para desenvolver grandes manifestações em defesa da “polis”, outra bem distinta é usá-la para lançar ao público algo da nossa intimidade, da nossa privacidade, algo que deveria ficar restrito a cada um de nós.
Consoante Bauman (texto citado), “o advento da sociedade-confessionário marcou o triunfo definitivo daquela invenção esquisitamente moderna que é a privacidade – mas também marcou o início das suas vertiginosas quedas do apogeu da sua glória. Triunfo que se revelou ser uma vitória de Pirro, naturalmente, visto que a privacidade invadiu, conquistou e colonizou a esfera pública, mas ao preço de perder o seu direito ao segredo, seu traço distintivo e privilégio mais caro e mais ciumentamente defendido”.
Pelo que parece (conclui Bauman), “não sentimos mais alegria ao ter segredos, a menos que se trate daquele gênero de segredos capaz de exaltar o nosso ego, atraindo a atenção dos pesquisadores e dos talk-shows televisivos, das primeiras páginas dos tabloides e das capas das revistas de papel envernizado. (…)”.
Em suma, quem revela suas intimidades (segredos) para o público, naturalmente está abrindo mão, nessa parte, da sua tutela jurídica. Esse é um campo de ausência de tutela penal, por deliberação do próprio interessado.
* Luiz Flávio Gomes, jurista e presidente do Instituto Avante Brasil, está no blogdolfg.com.br.
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