Fábio Flora *
Parafraseando a canção de Taiguara que abre e fecha o filme de Kleber Mendonça Filho, “Aquarius” traz no corpo as marcas de seu tempo.
Hoje a mulher diz não.
Clara (Sônia Braga, em modo musa) se recusa a vender para a construtora Bonfim o último apartamento do edifício Aquarius – onde mora há décadas, onde seus filhos cresceram e onde discos e livros e lembranças contrastam com a assepsia das cidades erguidas cada vez menos por pessoas, cada vez mais por criaturas que se formam em business schools e trocam sonhos por metas, a exemplo do jovem Diego (Humberto Carrão, excelente como o tubarão em pele de golfinho).
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Se dependesse da filha, Clara já tinha aceitado a oferta “generosa” da Bonfim e se mudado para um desses condomínios de segurança máxima e alma mínima, os estrangula-céus de nossas metrópoles. Mas quem perdeu o marido e até uma parte do corpo (o seio direito) não aceita novas perdas tão facilmente; ela aprendeu a valorizar cada conquista. Não por acaso conserva os cabelos longos – símbolo óbvio, mas não menos poderoso, de sua vitória sobre o câncer.
PublicidadeSímbolos, aliás, não faltam no álbum de metáforas montado pelo diretor e roteirista pernambucano. Um dos mais emblemáticos – porque rima à perfeição com o apê de Clara, que também guarda mais que objetos pessoais e, por isso, transcende o tal “valor de mercado” – é a cômoda que guarda mais que as camisolas de tia Lúcia (Thaia Perez). Aqui é particularmente interessante o efeito que causa no público a descoberta do que representa aquele simples móvel para uma senhora de setenta anos.
Kleber gosta de provocar. E faz isso em diversos momentos, como na sequência angustiante em que mulheres e homens surgem na praia gargalhando, numa espécie de ginástica do riso, e de repente o treinador que os orienta – contrariando a expectativa gerada pelo preconceito da plateia – convida a participar do exercício os “estranhos” que se aproximam.
Passagens como essa ajudam a retratar o país que a lente crítica do diretor vê. E se espalham nas mais de duas horas de projeção. É a parede do bistrô que ostenta fotos em preto e branco de homens brancos-ricos-velhos, numa alusão aos donos do poder local – e, por que não?, nacional, se lembrarmos o ministério machocrata do atual “governo”. É o rapaz de “boa aparência” que vende drogas na orla. É a louça na pia em dia sem Ladjane (Zoraide Coleto, brilhante nas menores falas), numa referência aos direitos recentemente conquistados pelas domésticas. É a manchete do jornal (“Eu gosto de MP3”) que resume a manipulação midiática.
Nenhuma delas se compara, no entanto, à que denuncia uma colônia de insetos infestando certo lugar e comprometendo sua estrutura. A cena põe para formigar a mente do espectador sessão afora. É inevitável relacionar o ninho à oligarquia de parasitas que, ao envenenar o frágil alicerce da democracia brasileira, mostrou ser possível expulsar uma personagem incômoda – de um apartamento ou de um palácio presidencial – sem usar a força bruta. Afinal, como observou Zuenir Ventura em artigo sobre o filme, “há meios mais eficientes que os tratores ou os tanques”.
Por apresentar um forte teor político, explicitar sua visão ideológica e se entregar a um desfecho catártico, há quem acuse Aquarius de dispensar a sutileza e se render a maniqueísmos. É evidente que Kleber recorre a um cinema mais tradicional, no qual heroína e vilão são rapidamente identificados. Mas ele não cria, a partir desses elementos, uma realidade menos verossímil. Longe disso. Na verdade, ultimamente tem sido até fácil encontrar claras dando aulas em nossas universidades e diegos dando entrevistas em programas de economia da Globonews.
O que o cineasta faz é apenas fotografar a velha flor que fura o asfalto – que resiste à fossa e à fome causadas pelo tumor da ganância. Esse que ainda vai acabar nos levando ao fim do mundo.
* Cronista residente no Rio de Janeiro, Fábio Flora mantém o blog Pasmatório e perfil no Twitter.