Luís Camargo *
Nas embalagens de cigarro, o Ministério da Saúde adverte: “Este produto contém mais de 4.700 substâncias tóxicas. Nicotina causa dependência física e psíquica. Não existe nível seguro para o consumo dessas substâncias.” A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera a nicotina droga psicoativa. Em consequência, o tabagismo é classificado como enfermidade crônica, registrada com o número 10 na Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde (CID-10/OMS) – grupo de transtornos mentais e de comportamento decorrentes de doenças psicoativas. A fumaça do cigarro tem a mesma quantidade de substâncias tóxicas (entre as quais, a nicotina), o que faz com que o fumo ocupe duas posições no ranking mundial de mortes evitáveis: está em primeiro lugar, pelo fumo ativo, e em terceiro lugar, pelo fumo passivo.
O tabagismo é considerado mundialmente um grave problema de saúde pública a ser controlado e reduzido por diversas medidas estimuladas pelo Estado, cujas diretrizes foram estabelecidas na Convenção-Quadro de Controle de Tabaco, ratificada pelo Brasil. Essas medidas envolvem desde as mensagens nas embalagens do produto até a proibição desse hábito em locais fechados e promoção de campanhas antitabagistas. Os fumantes trabalhadores estão submetidos a essas regras dentro do trabalho, seja para não promover o hábito de fumar, seja para facilitar o abandono dessa prática, seja, no mínimo, em proteção da saúde dos colegas não fumantes.
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Além de causar transtornos ao consumidor e às pessoas próximas, o tabagismo gera alto custo para a saúde pública. Esse custo está associado aos gastos com assistência médica e à perda de produtividade devido a adoecimento e mortes prematuras de fumantes passivos e ativos. Segundo pesquisa realizada sob a coordenação de Márcia Teixeira Pinto, da Fundação Oswaldo Cruz/Instituto Fernandes Figueira, em 2008, foram gastos no Brasil R$ 20,685 bilhões pelo Sistema Único de Saúde (SUS) com tratamento de doenças relacionadas ao fumo, o que equivale a 0,5% do PIB nacional em 2011. A indústria tabaqueira recolheu nesse mesmo período menos de um terço disso em tributos.
O Brasil está entre os três maiores produtores de cigarro do mundo, logo atrás da China e da Índia. A produção brasileira se volta principalmente ao público interno. Para o controle de qualidade do produto, a empresa convida trabalhadores para participar de um setor chamado Painel Sensorial. Esses trabalhadores são obrigados a avaliar pelo menos 12 cigarros ao dia, sem qualquer acompanhamento médico específico ou garantias de assistência médica quanto aos danos decorrentes dessa atividade. A empresa alega a seu favor que os trabalhadores voluntariamente recrutados para participar do painel são todos fumantes.
A Constituição Federal assegura o direito à dignidade da pessoa humana como fundamento de nossa sociedade. Isso significa que nenhum ser humano pode ser tratado como mero instrumento ou meio. O Estado tem como obrigação zelar para que toda pessoa tenha plena possibilidade de se desenvolver física, psíquica e culturalmente com a finalidade de tomar os rumos de sua vida. Nesse caso, a exigência da empresa claramente ofende o texto constitucional, pois esses trabalhadores têm sua saúde sacrificada diariamente em prol de um interesse meramente econômico. A obrigação de cuidar da saúde dos trabalhadores, além de constar da Constituição, foi afirmada pelo Brasil em diversas convenções internacionais, como as convenções 148, 155 e 161 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Melhor será a indústria se utilizar do avanço tecnológico que permite a medição milimétrica das substâncias de cada produto por máquinas. Além do mais, o procedimento da indústria do tabaco ignora os parâmetros da Resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde, que regula, de forma rigorosa e sempre com a fiscalização externa de uma equipe médica imparcial, qualquer pesquisa de substâncias tóxicas em seres humanos.
Em um momento em que a sociedade brasileira desperta para a necessidade de cumprir normas de segurança dentro dos espaços coletivos, o Ministério Público do Trabalho chama a atenção para o drama humano desse grupo de trabalhadores, cujo futuro, em geral curto e com sofrimento, certamente já está traçado. A questão está posta perante o Poder Judiciário trabalhista e já resultou na proibição da indústria em obrigar trabalhadores a avaliar os cigarros e na sua condenação ao pagamento de assistência médica a cada um por 30 anos. A decisão final, no entanto, ainda está por vir (TST – E-ED – RR 120300-89.2003.5.01.0015). Esperamos que não sejam os trabalhadores, suas famílias e o contribuinte brasileiro a arcar com os custos da produção do cigarro.
* Luís Camargo é o procurador-geral do Trabalho, autoridade máxima do Ministério Público do Trabalho (MPT).