Ricardo de João Braga *
Logo na primeira aula sobre democracia aprendemos que ela nos protege dos arbítrios do Estado. O mais celerado ditador pode impedir conflitos privados e manter a paz entre os cidadãos comuns, mas apenas a democracia nos garante que este Estado, todo poderoso, cheio de instrumentos e poder, não vai sufocar e destruir o indivíduo isolado.
Como uma criação humana voltada ao atingimento de alguns fins, a carga de expectativas e funções que a democracia tem de fazer frente é enorme: paz social, garantia de direitos, desenvolvimento econômico e social, dignidade humana, etc. Este instrumento inventado e reinventado pelo homem nos últimos 2500 anos carrega em si uma grande dose de utopia, é a forma de acesso das sociedades aos patamares mais elevados, sempre sonhados, muitas vezes perseguido e apenas às vezes atingido.
Pois bem, nossa “Copa das Copas” parece estar entrando em choque com a democracia que insistimos em que nos acompanhe nesta terra tropical. Nas ruas o povo brasileiro, desde junho último, vem manifestando de formas diversas sua visão do Estado brasileiro, a avaliação que faz de nossa sociedade e do nosso grau de desenvolvimento. Manifestações diversas ─ oscilando entre belos espetáculos de civismo até deploráveis ataques violentos (que causaram nossa triste primeira morte esta semana) ─ demonstram o grau de avanço cívico do povo brasileiro. E na outra ponta do processo está o Estado, também a demonstrar o quanto é familiar (ou não) com os valores democráticos.
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Vínhamos assistindo “no varejo” às manifestações (anti)democráticas de autoridades e forças públicas. É uma grande mistura, alguns eminentemente democratas, buscando compreender e canalizar as manifestações e ações públicas para atos de civismo e avanço, e outros escorregando, sem consciência ou com a boca já salivando de excitação, para as posições autoritárias. Deste fenômeno desconcentrado cultivamos a esperança de que ações e visões pulverizadas entrem em diálogo e consigam evoluir para uma sociedade mais inclusiva, tolerante, plural e consciente do que lhe exige e o que lhe propicia a democracia.
Contudo, temos agora um grande movimento “no atacado”, como um blindado que avança sobre a turba, confiante na força de seu motor a diesel e em suas paredes de aço. Trata-se do projeto de lei que tipifica como ato terrorista manifestar-se contra a Copa. O objetivo parece claro, tão mais transparente para quem comemora em março 50 anos do golpe militar de 1964. O poder público não quer saber de críticas, sua Copa deve ser também registrada em cartório como a melhor na “história deste país” e de todos os países.
Não vêm ao caso todos os fracassos que já pavimentam nosso caminho até a “grande festa do futebol”. Faltam-nos planejamento, transparência, capacidade gerencial, espírito empreendedor e acima de tudo honestidade na comunicação pública. Mas tudo isto não vem ao caso, podendo sempre rotular alguém crítico assim como um derrotista, talvez um elitista derrotista, e ridicularizá-lo como alguém que não quer ver o novo Brasil que surge das trevas para a luz. O que vem ao caso agora é ver como emerge um passado funesto, passado de 500 anos e não só 50, que nos mostra o alheamento das elites, sua confiança na força e na desinformação do cidadão brasileiro.
Precisamos de um legado simbólico, de atitudes, de valores, e a tipificação de manifestações públicas como terrorismo nos remete a um legado fúnebre. Se houver uma reflexão responsável sobre a democracia brasileira, teríamos a avaliar o grau de organização e conscientização cívica do povo brasileiro, a forma como as forças de segurança compreendem e interagem com os movimentos populares e agora, a última surpresa, como a classe política ainda é alheia a valores de tolerância, igualdade e pluralismo.
Alguns ainda querem administrar o Brasil como um empreendimento de amigos, alheio ao seu povo. Contudo, parece que nosso legado de infraestrutura e de experiência democrática nos remete ao ilustre Odorico Paraguaçu. Se ele não conseguiu construir seu cemitério, agora alguns avançam para consegui-lo, ao menos como legado simbólico da “Copa das Copas”.
* Doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj), Ricardo de João Braga também possui formação em Economia, e é professor e consultor político.
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