Edson Sardinha
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Nenhum jornalista acompanha as atividades do Congresso Nacional há mais tempo do que Rubem Azevedo Lima. De 1946 para cá, esse repórter de 81 anos de idade testemunhou não só a mudança de endereço do poder, do Rio para Brasília, como a transformação, no modo de fazer, de duas paixões de sua vida: a política e o jornalismo. Prestes a completar 60 anos de carreira, é um usuário freqüente da internet. É no computador que lê diariamente os principais jornais do mundo, logo após acordar, sempre às seis da manhã. Em busca de informações para a coluna de opinião que assina toda segunda-feira no jornal Correio Braziliense, é mais assíduo no Senado e na Câmara do que a grande maioria dos parlamentares. A facilidade com que se adapta às novas tecnologias contrasta com o incômodo causado pela decadência que ele identifica no Congresso atual. Reclama, por exemplo, das negociações feitas pelos líderes partidários para as votações. No tempo em que começou a cobrir o Palácio Tiradentes, lembra, “oposição era oposição, e governo, governo”. “A cúpula do partido faz acertos hoje que eram impensáveis no passado”, diz. Leia também O silêncio das galerias e do plenário também perturba Azevedo Lima, que se queixa da falta de grandes debatedores no palco maior do Legislativo. Referindo-se à ampliação do processo eleitoral, possibilitado por medidas como o exercício do direito de voto pelos analfabetos, constata: “O Congresso ganhou em representatividade, mas perdeu em qualidade. Elegeram-se pessoas menos habilitadas para o exercício do mandato”. Observador atento, critica jornalistas e empresas de comunicação pela perda de espaço da cobertura do Congresso nos grandes jornais. “Os repórteres não querem saber se aconteceu alguma coisa fora da pauta. Só se matarem alguém ali. Eles aceitam com naturalidade o cumprimento de uma pauta que, na maior parte dos casos, é voltada para os interesses do grupo que o jornal representa”, avalia. Para ele, por causa dos interesses econômicos quase sempre envolvidos, os jornais já não permitem que os jornalistas exerçam a crítica e duvidem “das verdades do entrevistado”. Apesar disso, nota uma melhora na qualidade do produto jornalístico e a atribui à criação dos cursos de jornalismo e ao maior zelo dos repórteres pela informação. Se a formação técnica foi forjada no dia-a-dia, a humanística veio de casa e da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ). Filho do deputado Azevedo Lima, eleito nos anos 1920 pelo bloco Operário Camponês, viu ainda pequeno o pai partir para o exílio em Portugal, durante o Estado Novo. O jornalismo apareceu por acaso na vida desse carioca de São Cristóvão. Depois de ingressar, por concurso público, na Imprensa Nacional, em 1946, Azevedo Lima foi seduzido pela oferta do Diário Trabalhista, um jornal de pequena projeção. O reconhecimento viria no Correio da Manhã, onde ficou até 1974, quando o jornal da lendária Niomar Moniz Sodré Bittencourt foi fechado pela ditadura. Viria também na Tribuna da Imprensa e na Folha de S. Paulo, onde permaneceu até a aposentadoria em 1986. No jornal paulista, conquistou, um ano antes, o prêmio Esso na categoria Informação Política, com a reportagem “Radiografia do Serviço Secreto”. Recusou-se a parar e continuou a exercitar suas paixões nas páginas do Jornal de Brasília e do Correio Braziliense. “(Na política) É mais fácil atirar pedras. Acredito que no jornalismo também tem de ser assim, mas sem radicalismo. É preciso duvidar da verdade absoluta sempre”, ensina Rubem, que, nesta entrevista, também dá mostras do seu bom humor contando saborosas histórias de um Congresso que não existe mais. Congresso em Foco – Quais foram as mudanças mais significativas do Congresso Nacional nesses últimos 60 anos? Rubem Azevedo Lima – O Congresso tornou-se mais democrático pelo critério de votação do povo. Ganhou em representatividade, mas perdeu em qualidade. Elegeram-se pessoas menos habilitadas para o exercício do mandato. Com exceção do PT, que manteve um núcleo muito atuante, os demais partidos não têm representantes jovens e de categorias importantes. Além disso, criou-se um sistema, que perdura desde o regime militar, que se baseia no voto do líder, uma votação simbólica. Há votação nominal uma ou outra vez. De resto, infelizmente, o parlamentar nem precisa se fazer presente ao debate. Aliás, não há mais debate, porque o regimento tornou-se mais ditatorial do que no começo da Constituinte de 1946. Há uma espécie de ditadura dos líderes partidários? Na verdade, quem decide não é o líder partidário. A cúpula do partido faz acertos hoje que eram impensáveis no passado. Havia os partidos governistas, que eram governistas, e aqueles de oposição, que eram de oposição. Raramente você encontrava uma dissidência, por exemplo, na UDN. Quando havia dissidência o indivíduo era chamado de chapa-branca. Hoje essas incoerências e traições eleitorais passam quase despercebidas, já não se dão os nomes de quem não obedece a linha partidária. Estabeleceu-se como princípio apelar para a idéia de governabilidade, uma outra invenção muito tendenciosa. Governabilidade você faz. Nos Estados Unidos, o governo não tinha maioria no Congresso e a oposição votava, em geral, as coisas importantes. No Brasil, não. Os partidos têm que se reunir em torno do governo para aprovar o que ele quer. A oposição não deve fazer a vontade do governo, desde que não prejudique o país, mas, nessas votações o que entra em último lugar, geralmente, é o interesse do povo brasileiro. No governo Collor, por exemplo, foi possível fazer, por medida provisória, o seqüestro da poupança. Quando comecei a cobrir o Congresso, era impensável que não houvesse clareza nas votações. Outra diferença é que as leis eram bem feitas, mesmo no regime militar. Por erro de lei não havia quase dúvida. Hoje os projetos são feitos por cima da perna. As medidas provisórias chegam com imperfeições gravíssimas e acabam proibindo aquilo que gostariam de permitir ou permitindo aquilo que queriam proibir. “Estabeleceu-se como princípio a idéia de governabilidade, outra invenção tendenciosa. Governabilidade você faz” Em 2004, a Câmara parou e as votações só foram retomadas após a liberação de emendas dos parlamentares. Como o senhor vê a troca de favores por votos? É o lado mais indecente. Vende o voto o político que não tem o ideal de levar um programa para o seu partido. O problema é que o poder está concentrado em muito pouca gente. Mas o governo alega que tem de fazer isso para conseguir maioria nas votações. Esse argumento segue o mesmo raciocínio dos militares, que criaram, na marra, dois partidos, um contra o governo (MDB) e outro a favor (Arena). O governo quer que seja assim, fingindo que está cumprindo um ideário democrático. Não é verdade. Quando se gasta dinheiro para ter um voto, o voto foi comprado. A emenda da reeleição de Fernando Henrique foi um escândalo. Para ele se reeleger, o Brasil gastou mais de US$ 80 bilhões. Primeiro, porque ele manteve aquele câmbio subsidiado e, segundo, porque houve transações de compra de votos que todo mundo sabe. Deputados renunciaram ao mandato para não serem cassados, todo mundo sabe disso. “A emenda da reeleição de FHC foi um escândalo. Para É possível evitar esse tipo de comportamento com o modelo de representação política que temos hoje? Tem que haver uma reforma de nossos costumes políticos. Tem de haver uma reforma que tolha um pouco o poder econômico nas eleições. Juntar tantos empresários para defender seus interesses em detrimento da vontade da maioria da população é um crime. A votação em termos de credo religioso é outra deturpação. Cada um tem direito de acreditar no que quiser. Mas tem muita gente que acredita em coisas que alienam sua vontade eleitoral. Era impensável o Rio de Janeiro, uma cidade politizada, eleger um líder de uma igreja qualquer que fosse. Se fosse uma personalidade que pusesse seu comportamento político acima dos limites da religião, como um D. Hélder Câmara ou um D. Evaristo Arns, que lutaram contra a ditadura, seria até aceitável. Ressalto que não sou católico, nem freqüento a Igreja. Agora, esses que se intitulam dirigentes de um pensamento religioso moderno aproveitam não só a pobreza, mas o desconhecimento e a inocência do povo, que dá voto a essa gente que não vem cuidar de interesse do país nenhum. Os próprios parlamentares reclamam que o Congresso deixou de legislar, por causa da pressão do Executivo. Isso é outra deturpação recente? Em geral, o Congresso só vota medida provisória. Cito, como exemplo, o caso de seqüestro de depósitos da poupança no governo Collor. Havia uma inflação muito alta, mas a poupança era corrigida. O Collor baixou uma medida provisória. Perguntei ao então senador Mário Covas como eles poderiam aceitar aquilo. Ele me disse que o mal seria maior se rejeitassem a MP, porque, na visão dele, no momento em que fosse restabelecido o direito dos poupadores, todos retirarariam o dinheiro dos bancos e o sistema financeiro quebraria. O mal já estava feito pelo governo. Houve queda na qualidade dos projetos apresentados pelos congressistas? Há muitos que até apresentam, mas percebem que é muito difícil aquilo ter curso. Preferem tentar incluir alguma coisa na votação da medida provisória. Essa situação será mantida enquanto não mudarem o número de deputados e o regimento interno. Tem de haver uma reforma política, mas, sobretudo, dos costumes, a partir da educação do brasileiro. Ao longo dos anos, o plenário, cenário de grandes debates, perdeu um pouco da graça? Não acontecem mais debates. O plenário perdeu a graça. Não sei se a inteligência entrou em colapso, se as pessoas não querem exercer aquela crítica com graça, mas sem agressão. Às vezes, vejo muita agressão. A líder do PT no Senado (Ideli Salvatti) chegou a cantar uma música ofendendo a oposição. O líder do governo na Câmara, o deputado Professor Luizinho (PT-SP), disse enormidades quando a Polícia Federal prendeu diretores de uma empresa ligada ao ministro das Comunicações (Eunício Oliveira). Falou que a operação era uma aberração, que tinha interesse de desestabilizar o governo. Como se a Polícia Federal não fosse governo. Incrível! “O plenário perdeu a graça. Não sei se Não há mais grandes oradores no Congresso? Nos anos 1950, havia, de um lado, Carlos Lacerda, mas havia gente do maior nível do outro lado também, como um Vieira de Mello. Depois, o Senado teve o Paulo Brossard, pela oposição, e o Daniel Krieger, homem do governo que era, acima de tudo, um liberal. Havia um debate de idéias que já não vejo mais. A briga agora é mais por cargos e verbas. Deve haver quem queira fazer o debate, mas não o faz. É preciso ressalvar que há senadores e deputados que cumprem o dever de defender seus estados e suas regiões, mas são muito poucos. A maioria só pensa em termos de voto. Se puder, abdica de suas idéias pra atender ao governo, ser ajudado pelo governador e, com isso, poder se reeleger. Meu pai (o ex-deputado Azevedo Lima) me contava que era assim nos anos 1920. Os governadores mandavam no colégio eleitoral e escolhiam quem queriam. Mas o próprio governador procurava os melhores de seu estado, uma elite cultural disciplinada. O Gilberto Amado, por exemplo, foi escolhido pelo Getúlio Vargas. Valorizava-se, pelo menos, o trabalho. A cobertura jornalística das atividades do Congresso melhorou ou piorou ao longo desses anos? A cobertura do factual do plenário, com exceção de acontecimentos de interesse específico, não tem mais o menor destaque. Os repórteres não querem saber se aconteceu alguma coisa fora da pauta. Só se matarem alguém ali. Eles aceitam com naturalidade o cumprimento de uma pauta que, na maior parte dos casos, é voltada para os interesses do grupo que o jornal representa. Há aqui e ali o pitoresco, ou então uma massa de informações desencontradas para confundir. O trabalho do repórter hoje é acompanhar os debates importantes nas comissões, porque o regimento impede que se debata com seriedade no plenário. O último grande debate que houve, no plenário, foi sobre energia nuclear, entre Aureliano Chaves, engenheiro e especialista no assunto, e Renato Archer, ministro da Ciência e Tecnologia no governo Sarney. Aquela aula foi o último grande debate que vi. Os jornalistas deixaram de questionar? Cabe ao jornalista questionar, mas o jornal não dá espaço para isso. O repórter tem limites. No tempo em que comecei não havia controle. O Paulo Bittencourt (dono do Correio da Manhã) uma vez me chamou. Levei até ele uma nota que haviam me fornecido. Perguntou-me se eu podia dizer o nome da fonte. “Doutor Paulo, não posso dizer”, respondi. Então, ele disse: “Vamos publicar, mas você fica responsável por ela. Se houver algum problema, você assume”. Ele poderia não ter aceitado e imaginado que a nota fosse invenção minha, mas não. Hoje, mudou muito. O jornalismo tem de ser de oposição? Tem de ser sempre crítico. Você não pode acreditar na verdade absoluta de ninguém. Votei, por exemplo, no Fernando Henrique, em 1994, porque ele parecia, na ocasião, o melhor quadro. Ele traiu tudo o que fazia no Senado. Depois, votei no Lula, porque ele prometeu isso e aquilo. Traiu de novo. Não sei mais em quem o eleitor brasileiro pode acreditar. Quando vejo o grupo Globo, com a massa de seus interesses, defender o Lula, quando vejo o Alexandre Garcia e a Miriam Leitão, que antes criticavam intensamente o PT, só elogiarem o governo, fica notório que a coisa não é séria. “Quando vejo o grupo Globo defender o Lula ou o Mas quem mudou nesse caso: a Globo ou o Lula? O Lula mudou. A Globo, não, continua governista. O que mais mudou na relação dos repórteres que cobrem o Congresso com os parlamentares? Mudou bastante. Quando o jornalista é de um grande jornal, é muito mais fácil. Atualmente o jovem (jornalista) está mais preparado do que no nosso tempo. Talvez, na nossa época, como não havia muitos atrativos fora, lia-se mais. Hoje, lê-se menos. Não há motivo para discriminação, mas os parlamentares discriminam principalmente os jovens que trabalham para os jornais menores. Com a Globo, não, é o “Abre-te, Sésamo”. Eu não tenho diploma de jornalista, mas acho indispensável o diploma, porque quando comecei havia de tudo. Havia gente decente e gente que não era decente, mas todos escreviam bem. Mas a essência, o respeito ao jornalismo como atividade profissional que tem por dever informar, era pouco conhecida. Alguns praticavam erros porque não tinham conhecimento e passavam por cima. Os problemas de natureza ética diminuíram? Estou na Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF), e percebo que temos tido problemas menores. Os problemas que chegam são relacionados, basicamente, a pessoas que exerciam o jornalismo e não pediram o registro no tempo certo. Caso de natureza ética só me lembro de um, que envolvia divergência entre uma entrevistada e o repórter, e era difícil julgar quem dizia a verdade. Em relação à cobertura do Congresso, não tem havido grandes problemas, porque há mais cuidado e zelo profissional. O repórter vê antes se a notícia tem coerência. Às vezes, ele se trai e deixa dúvidas, mas são imperfeições decorrentes da pressa. Que histórias o senhor presenciou que caracterizam o lado ridículo do poder que nem sempre ganha as páginas dos jornais? Tempos atrás, após uma série de cassações de mandato, foi chamado para tomar posse na Câmara um senhor chamado Luiz Pereira, de Pernambuco, um pedreiro. Cassaram tantos que ele foi chamado como deputado. Chegando ao Congresso, ele foi se orientar, queria saber o que tinha de fazer. Então disseram a esse senhor que ele tinha de fazer um projeto, prepará-lo e encaminhá-lo à mesa-diretora. Ele não entendeu nada, coitado. Era pedreiro, fez o projeto de uma casa e entregou. Tem uma história divertida do deputado Tenório Cavalcanti, o famoso homem da capa-preta, que abusava dos algarismos em seus discursos. Um dia, plenário vazio, ele esbravejava: “Neste momento em que falo, a cada minuto, morre uma criança de fome no Brasil…”. Uma das únicas figuras presentes no plenário, o deputado Dirceu Cardoso, do Espírito Santo, toma o microfone e grita: “Pelo amor de Deus. Então pare de falar”. O senhor chegou a presenciar episódios de violência entre parlamentares? Diversas, mas a que mais impressionou foi a prisão do Hélio Navarro (deputado eleito pelo MDB em 1966) em Brasília, em 1968. Ele foi agredido antes da leitura do AI-5 (Ato Institucional nº 5), ainda na noite de 12 de dezembro, no Aeroporto de Brasília, como se tivesse vigorando uma ordem penal. Também testemunhei o tiroteio entre o Nelson Carneiro (ex-presidente do Senado) e o Estácio Souto Maior (ex-ministro da Saúde), pai do Nelson Piquet. Dias antes, o Souto Maior havia esbofeteado o Nelson Carneiro, num episódio que eu também havia presenciado. Eis que um dia o Carneiro dispara três tiros contra o Souto Maior e foge. Um deputado chamado Brito Velho, que era um humanista, com formação filosófica extraordinária, um psiquiatra, saiu correndo atrás do táxi em que o Nelson Carneiro havia fugido. “Covarde, seu covarde, volte aqui, que estou dando voz de prisão”, gritava. Perguntei por que ele falava em covardia, pois o Souto Maior estava em condições de enfrentar o seu agressor. “Ele (Nelson Carneiro) foi covarde, porque deu tiros”, disse. Eu retruquei, dizendo que havia aprendido nas aulas de Medicina Legal que o tiro é uma forma de matar por impulso, mas sem covardia. Ele respondeu: “Não sabe de nada. Está aqui”. E abriu uma pasta enorme, na qual guardava documentos, e sacou um punhal enorme. “Tinha que ter usado era esse punhal”. Perguntei: “Mas isso também não é covardia?”. Ele: “Não, porque com isso aqui (o punhal) tem de chegar perto da barriga do inimigo para empurrar”. Desse tipo de violência, pelo menos, o Congresso parece ter se livrado… A violência continua. Na primeira Constituinte, 1823, Dom Pedro cercou o palácio de baionetas e o velho José Bonifácio fez continência, em ironia, aos militares. Em 1937, Getúlio fechou o Congresso com tanques em volta. Mas por que não deixaram aprovar a anistia recíproca nos anos 1980? Porque as pessoas que se insurgiram contra a violência, aquelas que deveriam ser anistiadas de verdade, a parte fraca, estão sendo execradas pela imprensa. Claro que há abusos. Na Constituinte de 1988, eu dizia e escrevia, mas ninguém dava bola, que os agentes estavam agindo dentro do Congresso. Cheguei a dizer que não havia canhão, porque os agentes estavam lá dentro. Não deixaram que se emendasse nada que dissesse respeito ao poder dos militares. Impuseram limites sobre a anistia. Não foi uma Constituinte soberana, ainda que passados nove anos da anistia. Resultado: eles se beneficiaram e as vítimas são tratadas hoje como beneficiárias de um assalto ao erário. “Na Constituinte de 1988, eu dizia e escrevia, mas Que lembranças o senhor guarda de Carlos Lacerda, uma das figuras mais controversas da vida política brasileira no século passado? Tem vários episódios. Uma vez, no final dos anos 50, ele era líder da UDN na Câmara. O Amaral Neto, que cobria a parte econômica do Congresso, disse a Lacerda que tinha uma denúncia sobre compra de máquinas pelo Ministério do Exército. Eu ia logo à frente deles. Era um troço desse tamanho. Lacerda disse: “Amaral, faz um resumo da ópera em português e conta lá pra mim”. Ele ia contando e o Lacerda só escrevendo. Dali, da Rua do Lavrador, ao Palácio do Tiradentes não havia mais do que um quilômetro e meio, uns quinze minutos. Chegando lá, Lacerda subiu à tribuna e falou sobre o assunto durante duas horas. Ele tinha um parafuso a mais. Ele era muito engraçado nos debates também. Houve um episódio dele com o Elói Dutra, deputado de primeiro mandato. Lacerda era um artista, sabia explorar com competência as fraquezas dos adversários. E estava falando quando o Elói pediu aparte. Lacerda acenou: “Um momento”. Mais alguns minutos, o Elói, incomodado, pede novamente a palavra. Lacerda repete: “Um momento”. Passados alguns minutos, ele viu o Elói distraído e disparou: “Tem o aparte o nobre deputado!”. Pego de surpresa, o Elói balbuciou, não sabia mais o que falar. O Lacerda então foi impiedoso: “Acabaram de ouvir o aparte do silêncio. O aparte de quem não tem o que dizer nesta Casa”. Acabou na hora. O Elói sumiu uns dias. Dizem que foi fazer tratamento psiquiátrico. “Lacerda era um artista, sabia explorar com Lacerda foi um dos responsáveis pela criação da CPI que investigou o acordo da Globo com o grupo Time-Life. O senhor se lembra da participação dele na comissão parlamentar de inquérito? Isso já foi em Brasília, mas ele deu um show também. A comissão era presidida pelo Roberto Saturnino (hoje senador pelo PT do Rio de Janeiro), e o relator era o Djalma Marinho, mas quem se destacava era o Lacerda. Ali ele falou sobre tudo. Na época, elaborei um texto, mostrando que ele havia usado todo o verbete, de A a Z. Ele desancou a parceria com frases que começavam com cada uma das 26 letras do alfabeto. Mas o que mais me impressionou foi a defesa que ele fez de si mesmo, no Rio – Lacerda não era advogado, fez só dois anos de Direito. A pedido de Juscelino Kubitschek, o Armando Falcão o processou por ter violado um documento do Itamaraty que comprovava o envolvimento de João Goulart com um argentino ligado à exportação de madeira. Quiseram cassá-lo. Lacerda se defendeu por quase 11 horas na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Foi a coisa mais espetacular que já vi. Ele perdeu na comissão, mas ganhou em plenário. Terminada a sessão, flores jogadas por mulheres nas galerias caíram sobre o plenário. De lá pra cá, quais foram os grandes intelectuais que passaram pelo Congresso? Acho que o último foi o Lacerda. O Menotti Del Picchia, um dos organizadores da Semana de Arte Moderna, foi um deputado inexpressivo. Dormia muito no plenário. Havia um deputado paulista chamado Carvalho Sobrinho, que fazia umas quadrinhas. Um dia, Menotti Del Picchia dormitava na Câmara. Logo à frente dele, estava a sisuda deputada Ivete Vargas. Carvalho Sobrinho escreveu uma quadrinha que dizia assim: “Todos dizem que ela dá. É possível que ela dê. Pois a Ivete é deputada, sem o “da” e sem o “de””. E pôs a quadrinha sobre os papéis do Menotti, que continuava a dormir. Carvalho chamou a Ivete e disse: “Olha, o deputado está fazendo uma quadrinha! Só pode ser pra você, Ivete”. Ela foi ver. Não precisa dizer que o coitado do Menotti acordou na hora. Além dele, conheci o Gilberto Freyre e o Jorge Amado como constituintes. O Tancredo (Neves) também foi um grande político e intelectual. O Congresso perdeu capital intelectual nas últimas décadas? Perdeu muito. A ditadura do Getúlio tirou muito. Quando entrei para a Faculdade Nacional de Direito no Rio de Janeiro, havia, dentro da academia, a UDN, o PTB e o PCB, não como representação, mas como ideologia, dentro da universidade. Havia interesse pela política, os estudantes respiravam a liberdade, depois de oito anos de ditadura. Situação que se repetiu no Brasil, depois do regime de 1964, mas a qualidade da representação piorou. A escolha dos parlamentares passou a ser mais democrática, mas com qualidade inferior. Isso revela o despreparo geral. À exceção de São Paulo, cujas universidades ainda mantêm uma qualidade muito boa – apesar de sua bancada não ser melhor do que as demais –, no resto do Brasil o ensino piorou. Mas não há nenhuma revelação entre os parlamentares da atual legislatura? Surpreendentemente pra mim, os que estão se sobressaindo hoje são aqueles que eram líderes do governo Fernando Henrique. Na época, aliás, nem apareciam muito. Um deles é muito radical, mas muito inteligente, o senador Arthur Virgílio (PSDB-AM). Há outros dois do PFL que se sobressaem. O senador Agripino Maia (RN) é muito comedido nas palavras, mas é um ferrinho de dentista. Outra revelação como debatedor é o líder do partido na Câmara, José Carlos Aleluia (BA), um engenheiro. Nenhum deles é tão jovem assim, mas só se revelaram na oposição. É mais fácil atirar pedras. Acredito que no jornalismo também tem de ser assim, mas sem radicalismo. É preciso duvidar da verdade absoluta sempre. |