Edson Sardinha
Autor de clássicos como Carnavais, Malandros e Heróis, o antropólogo Roberto DaMatta, 69 anos, está entre os mais reconhecidos explicadores do Brasil. Ou seja, pertence àquela elite de pensadores nacionais – alguns dos quais, já falecidos – que produziram conceitos considerados fundamentais para o entendimento do país, da sua história e seu povo.
Um dos seus objetos centrais de estudo é a malandragem, isto é, aquela mistura de cumplicidade em relação às transgressões das normas com a mania de tantos de “levar vantagem em tudo, certo?”. Ao analisar para o Congresso em Foco o significado político e cultural da atual crise política, DaMatta conclui que ela contribui para colocar em xeque esses modos de pensar e de agir tão consolidados entre nós.
Na sua opinião, os questionamentos são extremamente favorecidos pela “ética da responsabilidade fiscal”, nascida a partir do Plano Real. Ele afirma: “O que está acontecendo é que as pessoas estão colocando em dúvida essa malandragem: se isso deve continuar, ou não, em que circunstâncias e até onde a gente segura isso com o nosso dinheiro. Se ele tem a responsabilidade fiscal em casa, por que a prefeitura da cidade dele não pode fazer o mesmo? Por que o prefeito pode nomear um monte de parentes? Essas questões estão sendo cada vez mais levantadas. Essa postura mais igualitária entra em conflito com o jeitinho e as malandragens tradicionais”.
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Para o antropólogo, uma das perguntas que se fazem no momento é a seguinte: “Pode um partido político, como um time de futebol, querer ganhar todas as partidas sempre? E, para conseguir isso, pode começar a comprar o juiz e os próprios jogadores com o mensalão?”. No seu entender, a atual crise se diferencia pelo fato de ter sido “criada dentro do próprio governo”. Ele também destaca a “forte identidade” entre o presidente Lula e “o povão”.
Congresso em Foco – Ninguém como o senhor estudou tanto a figura do malandro na sociedade brasileira. A malandragem das ruas é a mesma que o eleitor costuma identificar no Congresso?
Roberto DaMatta – Eu defini a malandragem como aquela ação que fica entre a ordem e a desordem. Não é algo que está bem dentro da lei, mas que também não está completamente fora dela. Faz parte do comportamento brasileiro. Em determinadas situações, isso é até positivo, porque a gente precisa criar flexibilidade onde não há flexibilidade. Mas, em algumas situações, isso é muito complicado.
Em que casos, por exemplo?
No Brasil, você não consegue prender os bandidos. O Brasil é um país em que você denuncia o bandido e ninguém consegue prendê-lo. Isso vai desde o bandido que está na política até o traficante que alcança uma certa fama e arranja um bom advogado. E não há como você enjaular esse sujeito. Os juízes estão muito ocupados, têm muitos casos para julgar. Esses problemas são relativamente sérios. Há uma leniência com certo tipo de delito. O delito contra os cofres públicos sempre foi considerado uma coisa que fazia parte do campo público. É o sujeito que vai jantar com os amigos por conta da Secretaria de Saúde da prefeitura ou da Presidência da República. Mas essa idéia de possuir o cargo foi modificada pela idéia de ser uma pessoa que representa um papel. Essa malandragem sempre existiu. O que está acontecendo é que as pessoas estão colocando em dúvida essa malandragem: se isso deve continuar, ou não, em que circunstâncias e até onde a gente segura isso com o nosso dinheiro.
A partir de que momento o senhor identifica essa transformação na sociedade brasileira?
Há uma transformação grande. O Plano Real foi muito importante para isso, ninguém quer abrir mão da estabilidade econômica. O projeto do PT honrou o Plano Real. Esse é um dos elementos da contradição do partido no poder. O PT está fazendo uma política de mercado extremamente positiva e saudável. Há uma conjuntura mundial favorável, o Brasil está exportando, isso está segurando muito o país. Se não fosse isso, a crise teria proporções diferenciadas, o dólar estaria lá em cima. O real deu uma idéia para o povão do valor do dinheiro. Numa sociedade inflacionária, como nos tempos do governo Collor, os números pareciam relativos. Todo mundo ganhava em milhão. Com o controle da inflação e a estabilidade do real, as pessoas passaram a poder comprar a prestação. Quem tem salário baixo pode fazer um cálculo de quanto pode pagar pra comprar uma televisão. Isso é uma conquista – ninguém quer perder – e nos leva a uma ética de responsabilidade fiscal.
Como isso se reflete na prática?
A partir do momento em que o próprio homem comum aplica isso no seu orçamento, ele passa a exigir que o poder público também o faça. Aí a indignação é maior. Como pode a minha rua não estar asfaltada se a prefeitura de Niterói arrecada um dinheirão na área em que eu moro, por exemplo? O município de Campos, por exemplo, arrecada royalties de petróleo. O sujeito acaba sabendo, porque vê na televisão. A liberdade de imprensa também é importante. A imprensa brasileira está competindo, ela é muito competente, os jornalistas e os comentaristas são bons. O sujeito começa a cobrar. Se ele tem a responsabilidade fiscal em casa, por que a prefeitura da cidade dele não pode fazer o mesmo? Por que o prefeito pode nomear um monte de parentes? Essas questões estão sendo cada vez mais levantadas. Essa postura mais igualitária entra em conflito com o jeitinho e as malandragens tradicionais.
O senhor falou em aumento da indignação. Mas o cidadão comum que oferece dinheiro ao guarda pra evitar a multa de trânsito ou aquele que sonega informação na declaração do Imposto de Renda também não pratica um tipo de corrupção?
Claro. Sem dúvida, vamos chegar lá. Vamos chegar também nesses pequenos delitos, aceitáveis, entre aspas. A partir do momento em que se deixa de aceitar esse tipo de conduta nos outros, começa-se a politizar a discussão. O que você está me fazendo, no fundo, é uma pergunta crítica que talvez nunca tenha sido feita com tanta clareza, no caso do Brasil, que é a politização dos costumes. Determinados costumes, que eram considerados naturais, de repente, começam a ser politizados.
Que costumes, por exemplo?
Bater em mulher, por exemplo. Há três gerações o sujeito pegava a mulher com outro homem e sentava a porrada nela. Matava a mulher, matava o amante. Era normal, fazia parte da atitude. Se não fizesse, era ruim pra ele. O caso mais trágico é o do Euclides da Cunha (jornalista e escritor brasileiro). Armado, foi tomar satisfação com o amante da mulher. O sujeito deu um tiro na cabeça dele. Acontecia e ninguém politizava. Era normal que a mulher estivesse submetida ao homem. Com a mudança dos costumes, com o feminismo etc., começou-se a politizar a posição de que a mulher tem de ser inferior ao marido. Que história é essa? Homem e mulher são iguais, podem ser complementares em alguns aspectos. As coisas começam a mudar. O que estamos nos perguntando agora é se pode um partido político, como um time de futebol, querer ganhar todas as partidas sempre. E que, pra conseguir isso, começa a comprar o juiz e os próprios jogadores com o mensalão. Se você jogar no meu time, vou lhe dar um dinheiro extra. É claro que isso acontece. Mas é a primeira vez que um partido político faz isso e, ao que parece, de uma forma estruturada. Tudo indica que o PT fazia sim de maneira estruturada, porque é um partido extremamente ideológico, com projeto muito rígido de poder, com idéias sobre a sociedade e o Estado muito sistemáticas, com pouca flexibilidade para encarar determinadas mudanças.
A malandragem está com dias contados no Brasil?
Acho que não. Enquanto houver Brasil, vai ter malandragem.
É a resistência à malandragem que está crescendo?
A resistência está mais forte. Em determinados casos, porém, isso é muito complicado. Se o sujeito sai com os amigos à noite, vai continuar aquela disputa pra ver quem vai pagar menos chope. É o negócio de ser esperto, sabido. Se a pessoa pode deixar de declarar determinada coisa em relação ao Imposto de Renda, ela vai deixar de declarar. Essas coisas têm de ser trabalhadas politicamente.
Mas de que forma?
Conversando, trazendo isso para a esfera pública, publicando ou discutindo essas opiniões. A coisa passa por aí.
O senhor falou há pouco sobre emprego de parentes no serviço público. Há uma proposta de emenda constitucional na Câmara que proíbe o nepotismo. Em que casos a lei deve prevalecer sobre o costume?
A economia sempre ficou muito distante da moralidade, agora está mais próxima. Acho que essas leis anti-nepotismo são irreais. Se sou governador e tenho um filho que é piloto, por que não posso contratá-lo se ele é considerado um excelente profissional pelas companhias aéreas nas quais trabalhou? O que falta é o bom-senso. O bom-senso que tem funcionado no Brasil é o bom-senso da hierarquia e do parentesco. O que nós estamos tentando fazer é mudar esse bom-senso para o bom-senso do desempenho, do sujeito tecnicamente viável, de uma honestidade que é coerente com aquilo que vale para todos. A discussão do nepotismo também passa por esse tipo de filtro.
Estamos diante da primeira grande crise política acompanhada em tempo real pela internet. Não há certo fascínio das pessoas em ver o circo pegar fogo, pelo quanto pior, melhor?
A maioria das pessoas responsáveis, mesmo de oposição, recebeu a crise de maneira muito constrangida. Ninguém no Brasil que tenha responsabilidade, mesmo que seja antipetista, acha isso bom, porque o escândalo atinge um partido político que teve papel importante na redemocratização do Brasil. A crise lamentavelmente leva à seguinte pergunta: o partido político planejou tudo isso ou não? Se um partido está participando do mercado eleitoral em condições de igualdade, ele aceita as regras do jogo. Se não aceita, é um jogador que não joga de acordo com as regras, isso acaba com o jogo. É a coisa do estelionato. É um nome novo para uma coisa velha. É usar coisas que estão fora do jogo político, como o mensalão. A pessoa deixa de votar em você por convicção. Ele compra a sua convicção. É um problema muito sério, porque democracia é fundamentalmente baseada em discussão política. Não há como obrigar as pessoas a acreditarem em determinados valores.
Qual a especificidade da atual crise política?
A especificidade é que essa crise foi criada dentro do próprio governo. Ela vem de dentro pra fora. A crise do caixa dois é mais partidária do que pessoal. Não se trata de um esquema que teve como objetivo enriquecer pessoas, mas que foi engendrado mais para situar melhor um partido, para que ele tivesse controle maior sobre a competição eleitoral.
Há algo peculiar no jeito do brasileiro reagir a momentos de crise?
Dentro da classe média, você tem dois tipos de reação. Há as pessoas que votaram no PT achando que agora era a vez do Lula, que ele ia melhorar o Brasil etc. A decepção, nesse caso, é porque as coisas não estão acontecendo. Essas pessoas estão reformulando uma série de questões, como a idéia do salvador da pátria. E tem o pessoal da classe média que, esporadicamente, votou no Lula e que, por decepção, não vota mais nele.
E o povão?
O povão tem uma identidade muito forte com o presidente Lula, apesar do deslize, que é claro e insofismável, não dá pra dizer que não houve, uma vez que a CPI está mostrando as movimentações bancárias. É o povão que se identifica com ele (Lula). Muita coisa que acontece hoje com essa turma (o povão) é exatamente o que ele (Lula) passou e que ele conta, uma antologia do folclore da biografia do Lula.
O presidente Lula fala muito de sua origem humilde e ressalta que chegou aonde chegou sem ter feito um curso superior. Não há um limite tênue entre o auto-elogio e o elogio da ignorância?
Isso pode até existir, mas não vem muito ao acaso. Depende muito de como se constrói essa figura. O Lula é uma figura pra ser admirada. Não é brincadeira um sujeito sair de onde ele saiu e chegar aonde chegou. Há uma insegurança muito grande da parte dele. Percebemos agora oscilações que, antes, não apareciam nele.
Em que momentos o senhor identifica isso?
Numa entrevista concedida a uma jornalista brasileira em Paris (em julho), ele dizia que o caixa dois era sistemático no Brasil, que não tinha nada demais nisso, porque todo mundo fazia. Já nesta entrevista para o programa (Roda Viva, da TV Cultura), ele falou que caixa dois é uma prática inaceitável. E disse que tinha sido traído, num contexto que parecia que a traição era dirigida ao núcleo duro e a algumas pessoas que participavam da alta hierarquia do PT. Nessa entrevista, afirmou que o José Dirceu é um político do qual o Brasil deve se orgulhar. O que fica cada vez mais claro é que essa troca de liturgia tem também os seus elementos contraditórios. A televisão aproxima muito as pessoas, ela pega detalhes no rosto, no olhar, na mão. É claro que essas imagens têm o seu ponto de contradição. A movimentação da sociedade, a interação entre o mundo político e os acontecimentos que a própria política engendra vão transformando também essa mitologia.
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