Era um domingo deste outubro, quando reunindo a família, minha filha Manuela e meu genro André organizaram um “Chá Revelação” para publicizar o sexo da vida que, ainda timidamente pulsa no ventre materno. Antes, criaram um grupo virtual para que todos opinassem sobre as intuições ou os quereres sobre o que revelaria o exame tão secretamente guardado. Os palpites dividiam a galera, não se apurando, evidentemente, o hors concours “nascer com saúde”.
Atendendo às regras divertidamente criadas, trajando uma camisa rosa, fiquei a esperar o corte do primeiro pedaço de bolo revelador da opinião vencedora. Eu e toda família que acompanhava o suspense através da virtualidade instantânea do “zapzap”. – Ah! Esqueci de dizer que eu estava começando a trilhar pelo cobiçado caminho da “vovozice”.
Antes de prosseguir na narrativa da cor revelada, faço uma pequena pausa para esclarecer a razão do meu pensamento externar que o bolo revelaria o nascer de uma mulher para o mundo. É que certamente fui influenciado pela ação da filha e agora mãe Manuela, que, desde a mais tenra idade, enfrentara o machismo com o seu exemplo pessoal sendo, por isso mesmo, apelidada, carinhosamente, de “terrorista”.
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Ela, assim como ensinado por Simone de Beauvoir, tornou-se mulher logo após nascer e exigir o seu espaço de fala na ambiência familiar. E assim continuou a fazer nos cantos e recantos seguintes, desde o querer subir no telhado da casa para, como poetizou Fernando Pessoa, na sua pequenina altura, poder dizer que ela era do tamanho do que enxergava o seu olhar. Ou, antevendo a lição de Hellen Keller que: Nunca se pode concordar em rastejar, quando se sente ímpeto de voar.
E ela logo livre voou quando, recusando-se a exercer a advocacia dos pais, passou a estudar biologia no que chamávamos de “hiperdistante” Salvador, ainda no tempo em que morávamos em Aracaju. É desta época o reconhecido gesto de pousar em Conceição a escolha da madrinha de sua formatura, externando, assim, o carinho para com a sua primeira aliada das travessuras e protetora nas aventuras desde o dia em que saíra do ninho. E livre continuou ao escalar vários pedaços de moradia para chamar de sua, no estudar para melhor combater a doença de chagas, no assumir do compromisso com a vida ao “não comer bichos”, nos amores que desejou agasalhar no coração e na missão de assumir o trabalhoso mister em um restaurante com inovadores sabores. Enfim, uma mulher que sempre nos pareceu recitar o mantra de Anaïs Nin: Ajusto-me a mim, não ao mundo.
Daí a razão do meu inquieto e libertário coração sentir que viria ao mundo uma criança que já trazia no DNA a compreensão de que o planar da mulher é parte fundamental no céu da história, especialmente quando escolhe escrever para si a página do destino que ela própria quiser. Daí a motivação de ter me lembrado, quando o bolo cortado começava a externar a cor que logo se tornaria manifesta, do livro “Mulheres que ousam escolher”, na parte em que escrevi sobre a importância da luta das feministas que, quebrando o machismo que as quiseram invisíveis, aboliram de seu coração o sangue contaminado da omissão e transformaram em ação direta a conquista da velha utopia da igualdade entre todos os gêneros, todas as raças e todas as crenças.
Daí ter colhido, naquela fatia de cor ansiada que se exibia diante de nós, olhando as lágrimas que rolavam em emocionados rostos, uma frase da heroína catarinense Anita Garibaldi para a criança que festejávamos, símbolo do meu sentir naquele exato momento: Não tenha medo de viver, de correr atrás dos sonhos. Tenha medo de ficar parada. E um verso de uma amiga, também catarinense, que mora em terras brasilienses, Ana Paula Barreto: Nunca tive medo de mim mesma, apenas daquela que queriam que eu fosse!
A cor do bolo, compreendi ao perceber a engajada e feminista Torcida Azul, não tinha muita importância para todos nós que ali estavam, até porque esta equipe, como Cecília Meireles, Aprendeu com a primavera a se deixar cortar e voltar sempre inteira. É que, como diziam, o combate ao machismo que mata, violenta e castra os sonhos de mundo igual, justo e fraterno não se resolve apenas pelo sexo revelado em um pedaço confeitado de doce.
O machismo, o racismo, a homofobia, a misoginia também são fetos concebidos por um sistema cruel que também se utiliza do útero de uma mulher, fecundado, gerado e criado por homens e mulheres que acreditam na superioridade natural do sexo masculino, da cor branca da pele, do valor dourado do berço ou do local de nascença. A resposta para o seu combate, esclareciam elas, talvez estivesse em uma frase da autora do livro Anarquistas, Graças a Deus, especificamente quando Zélia Gattai, colorindo a vida disse: Acho que toda luta deve ser feita com mulheres e homens, assim como se faz um filho.
Cabe-me, agora, esclarecer como enxerguei a cor que me fez estrear na “vovozice”. Ela tinha a tonalidade multicolorida da vida, como a de Harriet Tubman, a estadunidense abolicionista “Moises Negra”, que certa vez disse: Libertei milhares de escravos. Poderia ter libertado outros tantos milhares, se eles soubessem que eram escravos. Também tinha a corajosa cor da persa Táhirih, mesclada com o tom rebelde da espanhola Dolores Ibarrúri, que sempre se recusou a viver de joelhos.
Eram tão variadas as cores, como cantou Mercedes Sosa, que no los puedo contar. A cor rosa, exibida no corte do bolo executado pelo pai André e colhido em pedaço pela mãe Manuela, era a cor do começo de uma jornada já trilhada que Rosa Luxemburgo assim reivindicou: Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.
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