Antônio Carlos de Medeiros *
O Brasil completa um período de trinta anos de democracia em 2018. A redemocratização foi iniciada com a eleição de Tancredo Neves por um Colégio Eleitoral, em 1985. E culminou com a Constituinte e a Constituição de 1988. Um ciclo político de 30 anos de democratização da democracia no país.
É esse ciclo político que chegou ao seu esgotamento, na esteira de um sistema político em processo terminal. São os estertores do “presidencialismo de coalizão”. Exibindo, mais uma vez, os dramas dos nossos dilemas e paradoxos institucionais e políticos. O sistema político contém um problema endêmico: não consegue construir maiorias estáveis de governo,convivendo com o espectro da ingovernabilidade e da redução drástica da capacidade de entrega de serviços à sociedade.
Leia também
Os paradoxos e dilemas criaram recorrência intermitente de anomia social e inquietaram,mobilizaram e politizaram a sociedade – que tem se movimentado num continuum entre a raiva e o medo –, desaguando nas manifestações de 2013 e depois. O corolário dessa situação histórica é que a nação pede passagem, num momento histórico que resulta em novo zeitgeist (espírito de época) em curso no Brasil. A ascensão da nação é a novidade histórica no Brasil do século XXI, apontando para o prenúncio de um processo de combate ao patrimonialismo e de restauração do Estado e do sistema político, na direção de um novo ciclo político – principalmente a partir do processo político-eleitoral de 2018.
O problema da formação de maiorias estáveis de governo é o calcanhar-de-Aquiles do sistema político brasileiro. Ele tem que ser enfrentado, em nome da estabilidade política, através de uma reforma política levada a efeito em ambiente constituinte, a partir e depois das eleições de 2018. Uma reforma que, agora em 2017, só pode ser feita com as mudanças minimalistas – embora importantes – da cláusula de barreira e do fim das coligações proporcionais.
Desnecessário enfatizar, a reforma política não é, e não será, um Deus ex machina. Mas ela é,sim, uma condição necessária, embora não suficiente, para a restauração do sistema e construção de novo ciclo político.Não obstante a questão da formação de maiorias estáveis, é inegável que o Brasil consolidou
uma sólida democracia de massas nestes últimos trinta anos. A participação política aumentou muito. A politização também. Houve uma grande inclusão da população adulta na cidadania.
O principio democrático do sufrágio universal. O Brasil tem o quarto maior eleitorado do mundo, atrás apenas da Índia, dos Estados Unidos e da Indonésia. Participação, como se sabe,é um dos pilares da democracia.
Também no que diz respeito à existência de outro pilar importante – o pilar da competição política – o Brasil avançou bastante. O sistema político mostrou-se pronto para a alternância de poder – vale dizer, para a competição política institucionalizada. Competição e alternância que já passaram, inclusive, pela eleição de um operário e, depois, de uma mulher, para a Presidência da República.
Portanto, quanto à participação e à competição, o país caminhou bem, embora ainda precise caminhar muito mais. Mas precisa melhorar, e muito, no quesito representação. É a fragilidade dos mecanismos e processos de representação que acarreta, em última instância, o problema da impossibilidade de formação de maiorias estáveis. O nó górdio está nos partidos políticos e no sistema eleitoral: na fragmentação partidária e na desconexão dos partidos e do sistema eleitoral com a sociedade.
Essa desconexão é um fenômeno que está se tornando estrutural em todas as democracias – portanto, não é uma jabuticaba brasileira –, mas no Brasil atinge um grau que desestrutura, deforma entrópica, o próprio processo de desenvolvimento do Brasil como sociedade. Por isso,refundar o ciclo político e econômico e restaurar o sistema político é um imperativo histórico, de realidade de mudança de época.
Quanto aos partidos, é fundamental a adoção da cláusula de barreira, para frear o avanço dos partidos de aluguel e a fragmentação partidária. Quanto ao sistema eleitoral, há que se aperfeiçoar a representação proporcional do eleitorado, através do chamado sistema distrital misto, de inspiração alemã. Esse sistema proporcional de voto misto melhora a proporcionalidade da representação do eleitorado, além de aproximar mais os eleitores dos eleitos e diminuir os custos das campanhas políticas.
Com o fortalecimento dos partidos e a melhoria do sistema eleitoral, será possível enfrentar a questão do financiamento de campanhas. Hoje, com a fragmentação partidária e com a personalização das campanhas, as eleições transformaram-se numa verdadeira indústria devotos. O adensamento dos partidos e a adoção do distrital misto tornam possível eleições mais baratas e factível a adoção do financiamento misto de campanhas, com regras bem definidas e transparentes e com monitoramento online pela Justiça Eleitoral.
Depois de inúmeras tentativas e fracassos, a reforma política ganha status de prioridade na agenda nacional. Apesar das resistências e dificuldades do próprio Congresso Nacional em promover uma reforma política relevante, a sociedade, a opinião pública e os meios de comunicação se convencem aos poucos de que ela é um imperativo de realidade, a partir da constatação de que o atual sistema contém o vírus da turbulência recorrente e da crise política imanente. É mudar ou mudar. Estamos sempre no limite da ingovernabilidade e da deslegitimação do regime de governo.
Agora, e nos próximos trinta anos, as instituições políticas e econômicas precisam de restauração que possa levar o país a formular e implementar políticas públicas de melhor qualidade, de entregar serviços. Ampliar as margens de consenso para acelerar as ações dos atores políticos e dos gestores públicos e privados. Caminhar das ideias e das prioridades para as ações, num ambiente político mais capaz de articular e agregar interesses. Realizar mais,implementar mais, fazer o país voltar a crescer.
O Congresso Nacional da legislatura em curso não tem legitimidade Constituinte para proposição e construção de reforma política ampla. Agora, o que é ainda factível é uma reforma minimalista: a cláusula de barreira; o fim das coligações proporcionais; e o financiamento misto de campanhas, para melhorar as condições para o processo político de 2018.
A reforma política que o Brasil precisa requer um ambiente Constituinte legitimado pelas urnas e não pode ser “fatiada em bifes”. O sistema político é resultante de um conjunto articulado de instituições democráticas quem interagem entre si como vasos comunicantes – isto é, como um sistema. Esse arcabouço institucional – o regime de governo; a forma de organização do Estado; o sistema eleitoral; o sistema partidário; a organização do Poder Legislativo; a Justiça Eleitoral; e a autonomia do Banco Central –, se entrelaça e se articula para estimular três capacidades cruciais para o funcionamento da República e da democracia, a saber:
1. A eficácia, ou capacidade do sistema político para produzir maiorias no Poder Legislativo e no Poder Executivo – permitindo, assim, a formulação e a implementação de mudanças sócio-econômicas;
2. A legitimidade, ou a capacidade de estimular uma vinculação com as opiniões majoritárias no país, desde que combinado com um sistema eleitoral que torne impossível a tirania da maioria e o veto da minoria;
3. A estabilidade, ou a flexibilidade para contornar crises – que dizer, a capacidade do sistema político de prevenir e resolver crises de governo, evitando que elas se transformem em crise de regime.
Nessa direção, só uma reforma política ampla e estratégica terá efeitos estruturais para criar – via ação política de um Congresso Revisor ou de uma Constituinte Exclusiva –, mecanismos,instituições e organizações que possam perdurar, quer dizer, criar instituições políticas que sejam elas próprias democráticas.
É no sentido da ação política para criar instituições democráticas para refundação e restauração do sistema político que caminharia um esforço de “engenharia política” no bojo de um Congresso Revisor ou de uma Constituinte Exclusiva (opção que deve ser posta para a sociedade no processo político-eleitoral de 2018, para que ela decida nas urnas). Uma engenharia política em ambiente Constituinte aguçaria e aprofundaria as percepções políticas dos atores democráticos sobre as alternativas possíveis e desejáveis para resolver os graves dilemas institucionais brasileiros, na direção da democratização da democracia.
Para recolocar o debate, essas instituições seriam: o regime de governo, com o parlamentarismo; a configuração do Parlamento – com o bicameralismo, com o Senado revisor e com a redução e a redistribuição por estado das cadeiras na Câmara Federal; o sistema eleitoral, com o distrital misto; a forma de Estado, com o federalismo cooperativo e promotor da descentralização; o melhor funcionamento da Justiça Eleitoral; a cláusula de barreira; o fim das coligações proporcionais; e a autonomia do Banco Central.
Só uma reforma dessa magnitude poderá criar condições políticas e institucionais para fortalecer uma ambiência de governabilidade, com formação de maiorias estáveis de governo.
Para superar as fragilidades crônicas do nosso presidencialismo de coalizão e, assim, fortalecer o combate à exacerbação da verdadeira indústria de eleições que se instalou no país, origem última de proliferação de crises éticas que se entranharam no processo político e levaram o patrimonialismo às últimas consequências.
Olhando em perspectiva, no horizonte 2017-2022, a restauração do sistema político e a refundação do ciclo político são um processo político de longa duração, cujo “marco zero”poderá ser as eleições gerais de 2018. De agora, até o processo político-eleitoral de 2018, já se está criando um ambiente constituinte que possa fazer com que as eleições de 2018 tenham a capacidade para recriar e legitimar uma nova agenda para o país.
Nessa agenda, a reforma política tem importância crucial, mas não pode deixar de ser acompanhada, de 2019 em diante, por um esforço político de reforma do Estado. A melhoria da representação política, via reforma política, e a melhoria da capacidade de entrega e da ampliação dos canais de mediação política, via reforma do Estado: diminuição do tamanho do Estado, para combater o capitalismo de laços; reforma administrativa; e pacto federativo para descentralizar recursos financeiros e de poder para estados e municípios.
Assim, no processo de democratização da democracia brasileira, o horizonte 2017-2022 poderá, então, mexer no cerne do pacto social e do conflito distributivo via canais da democracia representativa e da democracia participativa (mecanismos extra-eleitorais de participação, mediação e representação políticas). Que poderão dar maior plasticidade ao sistema político e multiplicar instâncias de mediação política, no contexto de uma sociedade com forte heterogeneidade estrutural e vários eixos de clivagens e conflitos.
No limiar de 2018, o Brasil parece estar à procura da superação dos seus traços de sociedade ciclotímica. Sociedade que vive a inauguração de novo zeitgeist e que aponta para a reinvenção da nação, na voz rouca das ruas e nos gritos dos grafos sociais do ciberespaço.
Essas vozes e esses gritos preparam-se para ir às urnas em 2018. Tudo isso poderá reforçar o renascimento de um novo ethos democrático e a refundação de novo ciclo político e econômico – vale dizer, novo Contrato Social. Caminhar, caminhando…
* Pós-doutor em Ciência Política pela The London School of Economics and Political Science.
Deixe um comentário