Pense em algumas das mais ácidas críticas que você viu, leu ou ouviu em relação ao Ministério Público (MP) nos últimos anos. Críticas, por exemplo, aos eventuais abusos na atuação de membros do MP. À tentativa maniqueísta da instituição (ou parte dela) de se apresentar como agente exclusivo do bem, contrapondo-se a outras autoridades, em especial do Poder Executivo, condenadas a encarnarem o mal. Ou, ainda, críticas ao furor reivindicatório de uma carreira com remuneração inicial superior a R$ 20 mil por mês.
O que você provavelmente nunca viu foi todas essas críticas, e outras tantas, na boca de alguém que integra os quadros do Ministério Público Federal (MPF) há 26 anos, ocupa o cargo de subprocurador-geral da República e atualmente exerce a função de corregedor-geral do MPF. Pois isso que é possível encontrar no ensaio de Eugênio José Guilherme de Aragão que o Congresso em Foco publica hoje. Com cerca de 70 mil caracteres, ele não é inédito. Mas, escondido entre os textos dos 89 autores do livro jurídico Direito Constitucional Contemporâneo – Homenagem ao Professor Michel Temer (Editora Quartier Latin, 2012), passou até aqui despercebido.
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É curioso que até agora o artigo não tenha gerado polêmica. Eugênio Aragão, aspirante a uma cadeira de ministro no Supremo Tribunal Federal, entrega as intenções provocativas já no título: “O Ministério Público na encruzilhada – parceiro entre sociedade e Estado ou adversário implacável da governabilidade?”. E no quinto parágrafo manda ver: “Impõe-se o debate sobre os limites de atuação do Ministério Público. Esse debate deve começar, preferencialmente porque de forma menos traumática, no próprio Ministério Público, que tem assistido à paulatina perda de espaço na organização do Estado”.
Sem meias-palavras, ele acusa o MP de jogar pelo confronto contra as autoridades para “causar risco” e assim “aumentar o valor específico da carreira no cenário remuneratório geral”. Acrescenta que outras carreiras se inspiraram nessa “dinâmica perversa” e passaram a fazer o mesmo, ou seja, a “criarem situações de risco precisamente para se valorizarem”. Afirma Aragão, que segue, paralelamente à carreira no MP, sólida atividade acadêmica (é professor da Universidade de Brasília, com doutorado na Alemanha e mestrado na Inglaterra):
“As corporações chegam até mesmo a disputar espaço capaz de gerar situações de risco. Não é à toa que Justiça, advocacia pública, Ministério Público e Polícia – e mais recentemente também a Defensoria Pública – vêm protagonizando embates duros para tomarem, uns, as atribuições dos outros”. Não, ele não faz uma condenação genérica da instituição. Escreve que “expressiva maioria dos membros do Ministério Público atua com espírito público e ciosa de seus deveres”.
Ressalva, porém, que, “ao agir de forma ‘justiceira’, descoordenada e politizada, o Ministério Público arrisca a posição que hoje ocupa no quadro constitucional”. Observa ainda que o MP não percebeu, mas o fato é que “sua imagem vem se desgastando ao longo do tempo em importantes setores do Estado e até da sociedade”.
Basicamente, o corregedor-geral mostra como um organismo desenhado na Constituição de 1988 com força e características sem paralelo em outros países do mundo tornou-se, desde então, refém de um corporativismo predatório, que floresceu em meio a uma “cultura anárquica de individualismo voluntarista entre os integrantes da carreira”.
História, Direito e Sociologia Política são algumas das áreas exploradas pelo autor, o que, contraditoriamente, pode tornar o seu trabalho leitura obrigatória para os “concurseiros”, palavra que ele usa de modo pejorativo e associa à, abre aspas, “atração que certas carreiras exercem nos jovens profissionais, por remunerarem bem e serem socialmente prestigiadas, sem necessária fidelidade às instituições”.
Para facilitar a leitura, dividimos o artigo em duas partes:
O Ministério Público na encruzilhada – parte 1
O Ministério Público na encruzilhada – parte 2
A discussão proposta por Aragão soa muito atraente neste momento em que o MPF se prepara para eleger – no próximo dia 17 – os três nomes da lista da qual sairá o novo procurador-geral da República, cargo máximo da instituição e de todo o Ministério Público da União, que também compreende o MP Militar (MPM), do Trabalho (MPT) e do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). O procurador-geral, diga-se, também preside o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que tem a função de fiscalizar os quatro ramos do MPU e ainda os Ministérios Públicos dos diversos estados (MPEs).
Outro fato torna o momento particularmente rico. O Ministério Público perdeu a aura de antes e se tornou objeto de ataques com origens e motivações diversas – ora em razão do envolvimento criminoso de alguns de seus membros, como aconteceu em Brasília durante o governo José Roberto Arruda. Ora por causa das reações que o seu bom trabalho causou em certas áreas, como o Congresso Nacional, onde um terço dos parlamentares responde a acusações criminais (feitas pelo MPF) no Supremo. Ora por causa dos conflitos entre membros do MP e outras carreiras de Estado, como os delegados policiais, principais defensores da PEC 37, hoje uma das maiores ameaças que pesam sobre o Ministério Público.
Alguns trechos do artigo
Veja algumas afirmações feitas por Eugênio Aragão no texto reproduzido na íntegra pelo Congresso em Foco:
“A relação entre o Ministério Público e o governo (ou Poder Executivo) passou a ser, ao longo dos últimos anos, muito conflitiva. Abandonando a postura de parceiro, a instituição passou a ser vista, pelo administrador, como risco à governabilidade”.
“O Ministério Público foi vítima de seu sucesso e de seu prestígio inicial. A independência funcional de seus membros e a autonomia administrativa da instituição, que eram seu maior capital, acabaram se revelando, também, como sua maior fragilidade. No mais, ao longo dos anos, parte dos membros passou a se encantar com seu poder de admoestação administrativa. O idealismo orgânico do momento constituinte foi dando lugar à atuação frequentemente individualista, politizada e corporativista”.
“Até hoje, a lógica da atuação de risco como condição de prestígio corporativo segue firme. E, na consequência, as corporações de diversas instituições de Estado disputam o espaço capaz de gerar risco, tendo como paradigma de sua ação o modelo que marcou o fortalecimento da corporação dos procuradores da República”.
“Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o Ministério Público passou a ter um novo concorrente de peso com a advocacia pública. Seu chefe maior [o hoje ministro do Supremo Gilmar Mendes] era integrante da carreira do Ministério Público Federal, da qual se afastara para ter exercício no Executivo e no Legislativo; conhecia bem sua instituição de origem e passou a confrontá-la severamente. A transformação de procuradores autárquicos em procuradores federais – antiga reivindicação daquele setor da advocacia pública, resistida pela corporação do ministério público – obedeceu à tática de multiplicar o número de carreiras com nomes parecidos, para confundir o público e, com isso, diluir a importância dos procuradores da República”.
“Usar a advocacia pública como contrapeso ao Ministério Público podia atender às demandas momentâneas de redução de riscos à governabilidade, mas, como efeito deletério permanente para o Estado brasileiro, resultou em sua fragmentação com competências conflitantes, tal e qual já ocorria e ocorre entre o ministério público e a polícia, no tocante à investigação criminal. Essa fragmentação enfraquece a ação do Estado e o torna refém das reivindicações corporativas. É o caso, por exemplo, na cooperação internacional, da assistência jurídica recíproca em matéria penal, matéria que tanto o ministério público quanto a advocacia pública reivindicam para seu âmbito de atribuições. (…) Quem sofre nessa disputa, sempre, é o estado como um todo, cuja credibilidade se vê diminuída por seus agentes, que se digladiam publicamente nos foros internacionais”.
“A contínua disputa entre instituições relevantes do Estado por espaço de atuação com impacto midiático e a ânsia de alguns membros do Ministério Público e de defensores públicos de mostrar musculação capaz de interferir na governança – com evidente busca de prestígio que os valoriza para as reivindicações de classe – tem o petencial de enfraquer sobremodo a capacidade de ação da administração pública na execução de políticas necessárias para o desenvolvimento do país”.
“Não que o Ministério Público não deva exercer seu controle de legalidade sobre as ações da administração; deve fazê-lo, porém, sem perder a disposição ao diálogo, à parceria, sem querer reivindicar justiceiramente um monopólio do espírito público que não lhe pertence. Não deve, com seu controle, inviabilizar escolhas políticas e bloquear sua execução, mas garantir qualidade e eficiência no processo e no resultado, dentro do marco legal existente”.
“Continua, hoje, a tendência a se superestimar a independência funcional como prerrogativa individual, em detrimento da unidade e da indivisibilidade. A recusa de dar seguimento às orientações e às diretrizes dos órgãos centrais – Câmaras de Coordenação e Revisão e, também, o Conselho Superior – colocam em cheque o governo do Ministério Público”.