No início da década de 70 do século passado, a Editora Brasiliense lançou uma coleção de livros em formato de bolso, chamada ’Primeiros Passos’, que foi um sucesso. Apenas durante o ano de 1999, por exemplo, ela vendeu meio milhão de exemplares.
A coleção reúne textos de diversos autores e sobre diversos temas: ’O que é Capitalismo?’; ’O que é Filosofia?’; ’O que é Racismo?’; ’O que é Cultura?’; ’O que é Existencialismo?’; ’O que é Família?’; ’O que é Arte?’.
A capa do livro ’O que é Arte?’ é a reprodução de um quadro, que poderia ser classificado como uma natureza morta, com um prato de comida (arroz, feijão e carne), um garfo e uma colher de pau. E se fosse um quadro representando um corpo nu? Seria uma degeneração ou uma obra de arte?
Essa pergunta cabe em função dos fatos e das obras censuradas nas últimas semanas.
Jorge Coli, em ‘O que é Arte?’, inicia o livro afirmando que é difícil dizer o que é arte. Também é difícil dizer o que é um ser degenerado.
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Já na introdução, Coli deixa claro que um sem-número de tratados de estética procurou definir um conceito do que é arte, mas se buscarmos uma resposta clara e definitiva, concluiremos que elas ”são divergentes, contraditórias, além de frequentemente se pretenderem exclusivas”.
Publicidade”Entretanto, se pedirmos a qualquer pessoa que possua um mínimo contato com a cultura para nos citar alguns exemplos de obras de arte ou de artistas, ficaremos certamente satisfeitos. Todos sabemos que a Mona Lisa, que a Nona Sinfonia de Beethoven, que a Divina Comédia, que Guernica de Picasso ou o Davi de Michelangelo são, indiscutivelmente, obras de arte.”
Será que Michelangelo, além de artista, era um degenerado por ter esculpido um Davi nu?
No Brasil colônia, em 1852, para dar resposta a “degenerescência” que crescia, foi criada a primeira lei de assistência ao doente mental e o primeiro hospital público para internar os degenerados, o Hospital D. Pedro II, no Rio de Janeiro. No mesmo ano, foi inaugurado o Hospício de São Paulo.
Até então, os ”loucos” viviam ”soltos” pelas ruas ou sob a responsabilidade de suas famílias. Esses ”loucos soltos” eram na grande maioria negros, ex-escravos e alguns brancos, quase sempre migrantes europeus pobres. Na sua maioria, considerados degenerados pela teoria (Tratado das Degenerescências) de Benedict-Augustin Morel, que escreveu seu tratado a partir da observação sistemática dos pobres e proletários dos arredores de Paris.
Assim como os conceitos de arte são contraditórios e divergentes, a definição de ”degenerado” tampouco tem conceito único.
Lima Barreto, sem dúvida nenhuma, era um artista, assim como foi Dante Alighieri. Mas Lima Barreto, pela teoria de Morel, também foi um degenerado, por isso foi internado, aos 33 anos, no Hospital Nacional de Alienados, na Praia Vermelha.
Entre os sinônimos de ”degenerado”, Houaiss coloca que é aquela pessoa “que passou a um estado ou condição qualitativamente inferior; decaído”. O mesmo Houaiss define, entre outros conceitos, arte como o uso da “habilidade nos diversos campos do pensamento e do conhecimento humano”, “perfeição, esmero técnico na elaboração”, “capacidade especial; aptidão, jeito, dom”.
Observando e relacionando estes conceitos, é possível afirmar que os que mandaram (deputados, juízes e MBL) fascistas fechar, censurar e vigiar, nas últimas semanas, obras de arte e peças de teatro, são inferiores em relação à intelectualidade média do povo.
São mentalmente degenerados, não sob o conceito de Morel, mas em decorrência de sua própria concepção sobre o que é arte. Enxergam em uma obra de arte aquilo que condenam, mas muitas vezes não deixam de praticar. Ou talvez não as pratiquem por entender que estarão cometendo algum tipo de crime ou imoralidade. Ou mesmo passam, por reprimir a vontade, ao sofrimento psicológico.
Já que há no Brasil juiz com pretensão de jurisdição internacional, será que não tem nenhum deputado, delegado, procurador ou militante do MBL, para pedir a algum juiz que censure a Capela Sistina? Lá também há corpos nus.
Recomendo a esses ”degenerados” que leiam ”O que é Arte?”