A primeira mesa, coordenada por outro confrade do Ipol, o politólogo e analista internacional Ricardo Caldas, teve como expositores o próprio Font, que além de organizador, é autor da “Introdução” à coletânea; novamente o nosso anfitrião Peixoto; e o cientista político e professor do antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Uerj) – há pouco transplantado para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, passando a se chamar Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) – Renato Boschi, veterano estudioso da história e estrutura da articulação de interesses (lobby) empresariais no Brasil. Ele escreveu o terceiro capítulo de The Brazilian State, intitulado “State developmentalism: continuity and uncertainty”. As três exposições, foram debatidas por outro professor do Ipol, Antonio Brussi.
Em sua apresentação sobre “Estado, mercado e desenvolvimento: foco na infraestrutura”, Maurício Font questionou se o processo de reformas liberalizantes dos anos 90 (abertura comercial externa, privatizações, estabilização monetária e responsabilidade fiscal) – com agenda inspirada no nunca suficientemente demonizado Consenso de Washington, aquela cabala ‘imperialista’ e ‘neoliberal’ que a esquerda ama odiar – estaria com seus dias contados para dar lugar a um Consenso de Brasília. Afinal, desde o segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a política econômica readquiriu um perfil mais dirigista, como exemplificam os generosos financiamentos do BNDES a grandes grupos empresariais amigos e financiadores eleitorais do PT. Agora, no governo Dilma, noto que o programa Brasil Maior segue nessa senda de incentivos fiscais, protecionismo comercial e política industrial, fundamentada na crença de que a tecnocracia estatal pode e deve escolher firmas ‘vencedoras’ em setores ditos estratégicos, no pressuposto de que os burocratas do Executivo e das agências oficiais de fomento, além dos economistas da Unicamp e quejandos, são muito mais ‘espertos’ que o mercado.
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Antes de discutir as limitações desse enfoque intervencionista, o brasilianista passou em revista fatores domésticos e externos que ensejaram o boom de consumo de massa responsável pelos altos índices de popularidade do ex-presidente Lula e seu governo. São coisas que não constituem nenhuma surpresa para pessoas medianamente informadas sobre a economia brasileira, mas que uma ruidosa e caríssima máquina de propaganda do governo federal, secundada por um exército de blogueiros chapa-branca, faz de tudo para esconder do povão: a bendita herança da política macroeconômica do fernando-malanismo, acolhida e aprofundada no primeiro lulato pelo eixo Palocci-Meirelles; a insaciável fome de commodities agrícolas e minerais do dragão industrial-exportador chinês; o afluxo de capitais privados, domésticos e externos, para investimentos em áreas de infraestrutura (sobretudo telecomunicações), graças à privatização desse setor e também à flexibilização do monopólio estatal do petróleo e do gás, em meados dos anos 90.
O reverso dessa medalha, advertiu Font, residiria em sérias e persistentes debilidades do Estado brasileiro, que, na visão do antropólogo Roberto DaMatta sempre teve razões que a própria sociedade desconhece; o mesmo Estado, também, que os ideólogos petistas, ‘viúvas’ da era Geisel, idolatram e vêem como solução para tudo; e que os brasileiros, a um só tempo, tendem a temer como a um tirano e a confiar como em um paizão camarada.
Nos três níveis de governo, o Estado brasileiro fica com quase 40% de toda a riqueza que o país produz, mas, entre custeio de uma inchada, aparelhada e ineficiente máquina pública, corrupção endêmica que o lulismo catapultou a níveis ‘nunca dantes’ alcançados, rolagem da dívida pública com os bancos e agigantamento do assistencialismo, no fim sobra pouco dinheiro estatal para poupança e investimento (de 1% a 2% do PIB).
Daí, como explicou Font, as debilidades da nossa infraestrutura de viação e logística. O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), lançado por Lula em 2007, até hoje entregou apenas um terço das obras planejadas. As parcerias público-privadas (PPPs), mesmo reguladas por lei federal desde 2004, não entusiasmaram os investidores, descrentes da capacidade da burocracia governamental para gerir seu dinheiro e mantê-lo a salvo da gula ‘companheira’ e dos demais partidos políticos da coalizão oficialista – com ou sem a faxina ética que a presidente da República agora parece ter-se arrependido de haver anunciado.
PublicidadeOutro entrave, sublinhado pelo diretor do Bildner Center, ao deslanche das PPPs brasileiras, em contraste com os progressos verificados, por exemplo, no Chile, é a incompetência para contornar “conflitos federativos” com governos estaduais, tais como os que retardam a conclusão das obras ferroviárias do Ferroanel de São Paulo, da ferrovia Norte-Sul e da Ferronorte (Mato Grosso).
Na sua exposição, “O Estado brasileiro desde Vargas”, João Paulo Peixoto referiu, com ironia, à “duvidosa delícia acadêmica” de ter de comprimir 70 anos de história em 15 minutos de apresentação.
Peixoto iluminou o contraponto entre a profusão de modelos políticos experimentados pelo Brasil desde a Independência – monarquia constitucional, república presidencialista, ditadura civil, ditadura militar, república parlamentarista –, de um lado, e, de outro, a profunda linha de continuidade na tradição do patrimonialismo intervencionista, tão forte que já relegou ao abandono inconclusas reformas como as privatizações e a modelagem administrativa do Executivo federal, as quais praticamente começaram e terminaram no primeiro mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso.
(Enquanto ouvia meu colega discorrer sobre os fracassos sociais e os déficits de cidadania no rastro da centralização e da hipertrofia do poder do Estado [“De que adianta o Brasil virar a sexta, ou quinta economia mundial se continua com índices de desenvolvimento humano e desempenho educacional que nos envergonham?” – desafiou], lembrei-me da lição que aprendi com autores liberais como Antonio Paim [A querela do estatismo, Momentos decisivos da história do Brasil e O liberalismo contemporâneo] e Simon Schwartzman [Bases do autoritarism brasileiro]: em países onde as empresas estatais e os tecnocratas são muito poderosos, as desigualdades tendem a se multiplicar até tornar impagável a dívida social. Em suma, Estado rico, sociedade pobre.)
Em viva contraposição ao diagnóstico do professor Peixoto, a visão de Renato Boschi me pareceu bem otimista. Sua exposição – “Política e trajetória no desenvolvimento capitalista brasileiro” –, enfatizou o papel positivo do Estado no crescimento econômico e no desenvolvimento social do país.
Boschi, que no momento conduz pesquisa sobre variedades de capitalismo, tecnologia e ecologia, fez referência à “escola francesa da economia política da regulação”, paradigma segundo o qual decisões de política pública tomadas no passado assumem uma rigidez que se reflete na longa continuidade das trajetórias estatais (aquilo que os cientistas sociais de língua inglesa denominariam de path dependence). Mesmo assim, acrescentou o professor do Iesp/Iuperj, o advento de uma crise sistêmica introduz significativas descontinuidades e inflexões de curso. Como exemplo recente, ele apontou a Grande Recessão, de 2008 até hoje, que, a seu ver, estaria fomentando uma reavaliação positiva do papel regulador e fomentador do Estado nos centros hegemônicos do capitalismo mundial, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, depois do longo descrédito ideológico a que influentes líderes liberal-conservadores condenaram as políticas dirigistas ou assistencialistas. (Imediatamente vêm à memória os nomes de Ronald – “O governo não é a solução, é o problema” – Reagan e de Margaret – “Não existe essa coisa de sociedade” – Thatcher.)
No caso brasileiro, a análise de Boschi converge com a de Peixoto, no que em um juízo de fato (continuidade do protagonismo econômico do Estado); porém, ambos discordam fortemente em termos de juízo de valor quanto à benignidade/malignidade do processo.
Para acentuar a continuidade da trajetória brasileira, o expositor contrastou-a com o caso argentino, que, no século passado, experimentou violentas reversões de política econômica, decorrentes de uma discordância fundamental entre as classes dirigentes: agraristas liberais contra uma aliança do empresariado industrial protecionista com o sindicalismo peronista. No Brasil, ao contrário, o consenso pró-estatismo estaria solidamente enraizado na cultura política das diversas elites.
Neste ponto, refleti que Boschi e Peixoto voltavam a convergir em mais uma constatação factual: a de que a abertura comercial promovida pelo governo Fernando Collor e as privatizações e reformas do Estado encaminhadas o Itamar Franco e FHC representaram pouco mais que soluções de continuidade passageiras e superficiais na carapaça do estatismo brasileiro.
O iuperjiano acrescentou que a análise comparativa das trajetórias macroeconômicas deve estar atenta não apenas às diferenças mais evidentes, mas também a semelhanças sutis e aparentemente paradoxais. Um exemplo: a despeito do encolhimento drástico da infraestrutura de bem-estar social durante a ditadura do general Pinochet, sob a orientação de economistas ultraliberais egressos da satânica Universidade de Chicago, o Chile manteve inabalável o controle estatal de atividades econômicas-chave como a mineração do cobre, antes e depois da transição democrática no início dos anos 90.
(Se eu não estivesse tão ocupado anotando tudo para o meu resumo final, teria, nesse momento, levantado o braço para pedir licença de recordar a diferença abismal entre a nossa carga tributária e a dos chilenos, cerca de metade da brasileira…)
Para o final da apresentação de Boschi ficariam suas observações mais polêmicas, como a de que a concentração unilateral de muitos pensadores políticos e sociais, hoje, sobre os efeitos perversos do patrimonialismo dificultaria o reconhecimento de um aspecto “positivo” do capitalismo politicamente orientado à brasileira, saber: a preservação de núcleos profissionais de grande competência instalados em setores ‘modernos’ da administração federal direta (caso do Ipea) e, claro, nas grandes empresas estatais, como Petrobras, BNDES, Eletrobrás e tantas outras. (Cabe esclarecer que patrimonialismo e capitalismo político, ou politicamente orientado, são arquétipos da sociologia de Max Weber: o primeiro designa a modalidade de dominação política que borra as fronteiras entre o ‘público’ e o ‘privado’ em proveito dos governantes, dos altos escalões burocráticos estatais e dos aliados-clientes de ambos no mundo dos negócios. Esse arquétipo foi introduzido na ciência social brasileira por Raymundo Faoro na sua obra capital, Os donos do poder, cuja primeira edição data de 1958. O segundo arquétipo [capitalismo político ] tem evidentes afinidades com o primeiro e descreve as atividades dos empresários cujos lucros derivam muito mais de suas conexões com o governo do que da competição com outras firmas no mercado.)
Antonio Brussi, debatedor dessa primeira mesa redonda, adiantou que concentraria os seus comentários na fala e no capítulo de Boschi na coletânea em foco, em vez de confrontar as idéias deste com as de Font e Peixoto.
Chamando atenção para os dois eixos fundamentais do trabalho analisado – o papel do Estado diante da atual crise econômica, aqui e lá fora; e o “avanço da fronteira social” possibilitado pela expansão do mercado de consumo interno durante a era Lula –, Brussi concordou com a interpretação de que as reformas liberais da década de 90 não se provaram suficientemente resistentes para apagar o legado varguista do planejamento econômico e das políticas sociais (trabalhista, previdenciária). Algumas das realizações mais marcantes do governo Lula estariam ligadas, simultaneamente, ao já referido robustecimento do consumo de massa e ao reforço da rede de proteção social, onde se encaixam os sistemáticos aumentos reais do salário mínimo, o programa Bolsa Família e a redução do IPI sobre automóveis e outros bens duráveis.
Brussi argumentou que, para Boschi, teria sido/ainda seria possível avançar nesse caminho via ampliação dos financiamentos do BNDES, do programa habitacional Minha Casa, Minha Vida, das obras do PAC e do próprio Bolsa Família.
(Neste momento, suspirei para dentro: “Tudo maravilhoso se isso não tornasse a carga tributária – sempre esse detalhe fatal! – mais pesada do que já é…)
O debatedor esboçou um panorama histórico das respostas da economia brasileira às anteriores crises cíclicas do capitalismo mundial. A de 1875-1896, foi enfrentada com a expansão da cafeicultura em São Paulo, a qual, impulsionada pela imigração de trabalhadores livres da Europa, permitiu que a acumulação de capitais transbordasse para outros setores, assim possibilitando o início da industrialização. À depressão de 1929/30, o Brasil reagiu com a adoção da estratégia de substituição de importações, que se estenderia do início da era Vargas até praticamente o fim do regime militar.
O desarranjo sistêmico iniciado em 1971 com a decisão do governo Richard Nixon de sepultar um dos pilares da ordem econômica do pós-Segunda Guerra Mundial, acabando com a paridade dólar-ouro, abriu caminho a um período de ‘estagflação’ a que o Brasil levaria muito tempo para responder à altura, com o encerramento da estratégia substitutiva de importações, a sua troca pela integração competitiva ao mercado mundial e, finalmente, a conquista duradoura da estabilidade de preços.
Enfim, Antonio Brussi se mostrou cético em face da perspectiva do avanço do redistributivismo por tempo indeterminado, sublinhando que os casos dos Estados Unidos e do Reino Unido estão aí mesmo para ensinar que é possível, sim, ocorrer retrocessos no índice de Gini, medida de concentração de renda. O debatedor fundamentou seu pessimismo em hipótese formulada por dois marxistas americanos hoje quase inteiramente esquecidos, Paul Sweezy e Paul Baran, segundo quem existiriam sistemas socioeconômicos na periferia capitalista fadados a chegar à decadência antes de alcançar um imaginário apogeu.
(Do meu canto, conjecturei que, nesse raciocínio, talvez fosse possível encaixar a preocupação de economistas brasileiros atuais e nada marxistas como o gaúcho Aod Cunha e o portenho-carioca Fábio Giambiagi, que têm alertado para o perigo de, na ausência de reformas inadiáveis, tornar-se o Brasil demograficamente velho antes de ficar rico, desperdiçando o seu passageiro “bônus demográfico”, janela de oportunidade que consiste no fato de que parcela considerável da população economicamente ativa ainda ser jovem o suficiente e já ser numerosa o bastante para arcar com os custos das aposentadorias de um crescente contingente de trabalhadores maduros.)
Enquanto eu assim devaneava, boa parte do plenário reagia inquieta à hipótese de o patrimonialismo ostentar um lado bacana. Bem a propósito disso, Font relembrou que, no início dos anos 50, o sociólogo Hélio Jaguaribe já advertia contra os três Cs que entravavam a marcha do desenvolvimento brasileiro: clientelismo, corporativismo e corrupção.
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