Já no berço, a democracia mostrava ser um sistema político sujeito a erros e distorções. A Atenas do quinto século antes da Era Comum nos oferece inúmeros exemplos de como o governo do povo é o palco perfeito para o aparecimento de toda sorte de aproveitadores ávidos pelo poder, sabedores de como se comportar para cair nas graças da maioria e para manter em alta sua popularidade. Tais problemas da nascente democracia foram retratados com perfeição no teatro grego, espécie de novela das oito da época, que não se furtava em apontar o dedo para as agruras e feridas de seus governos.
Mas, como no célebre dito de Karl Marx, a história se repete primeiro como tragédia e, depois, como farsa. Aristófanes, o grande comediógrafo ateniense, trata do tema em sua peça intitulada Cavaleiros, apresentada no festival das Leneias de 424 aEC. É a primeira vez que ele assina a peça em seu nome, a mostrar a importância dela: o autor está colocando a cara para bater – e batendo sem dó não só na figura dos políticos como de quem os escolhe.
A comédia começa na casa da personagem principal, chamada Dêmos, que em grego significa Povo, caracterizado por um de seus servos como “um patrão de temperamento rude, devorador de favas e irascível”, exatamente como o povo ateniense nos anos conturbados do final do quinto século, quando uma frágil democracia estava às voltas com sucessivos golpes e instabilidades financeiras e militares. A referência às favas é aos frequentes pleitos eleitorais, que as utilizavam como cédulas para as urnas. Nas tintas carregadas de Aristófanes, esse patrão, chamado de: Dêmos soberano (literalmente, frequentador da Pníx, morro onde se realizam as assembleias, o palácio do Congresso), é “um velho intratável, e surdo”.
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Sua excelência, o salsicheiro!
Na comédia, Dêmos, o Seu Povo, é bajulado o tempo todo por um servo de nome Paflagônio, de profissão curtidor, que representa na comédia a figura do demagogo: “safado e impostor como é, compreende imediatamente o caráter do dono”. Os outros servos, indignados, tentam derrubar Paflagônio com a ajuda do coro da comédia, representado pelos cavaleiros. E apostam todas suas fichas em uma nova figura política emergente na ágora ateniense, a de um salsicheiro. A inversão cômica da política como devia ser é evidente: em lugar do servo corrupto, o pretenso golpe pretenderia colocar no poder um ignaro salsicheiro.A farsa não se exime de representar, em tons cômicos, a surpresa do salsicheiro ao ser apontado como candidato ao governo. O coitado afirma ingenuamente não sentir-se à altura da responsabilidade, mas de pronto recebe de um servo uma aula de como agir: “É a coisa mais fácil do mundo: faça como sempre faz: misture, embrulhe todos os miúdos juntos, puxe o saco do povo sempre, adoce-o com frases típicas de um vendedor de comida. As virtudes do demagogo já as tens, tens tudo o que é preciso para a política”.
Paflagônio e o salsicheiro vão, então, disputar para ver quem atrai a simpatia do povo. Como em uma corrida eleitoral contemporânea, vale-tudo: os dois “candidatos” trocam ameaças, insultos e denúncias. Mas o que será decisivo para ver quem será o escolhido é a distribuição de benesses para os “eleitores”. Cada um dos adversários enche um cesto e sai pela cidade distribuindo suas iguarias: tortas, empadas, sopas, purês.
O salsicheiro vence a disputa ao esvaziar o seu estoque – enquanto Paflagônio mantém o seu cesto ainda cheio – demonstrando, assim, que o desafiante não economiza na hora de satisfazer o povo. Mas, nada de pensar aqui nos eleitores como pobres coitados enganados: eles apenas se aproveitam da situação para benefício próprio.
Farsa inevitável?
A farsa aqui está na imagem invertida daquela que deveria ser a figura do político democrático. Aristófanes escancara o clima de derrota ética da cidade, a sensação de que o mundo da política está “de cabeça para baixo”. Por trás dos Cavaleiros, há, claramente, uma crítica nem tão velada ao político populista Cléon e mais em geral à política ateniense envolvida já há alguns anos nas agruras da Guerra do Peloponeso e de uma instabilidade política interna de golpes e contragolpes.
Mas, como sempre nos grandes escritores de nossa cultura, Aristófanes parece conseguir ir além da crônica imediata de um desastre iminente e esboçar algo como uma tipologia ideal de figuras políticas, caricatas certamente, mas se formos olhar para as páginas de política atuais, talvez nem tanto. O que encontramos na comédia antiga que o denuncia de uma política corrompida tão profundamente pelos interesses pessoais e pela falta de qualquer tipo de preocupação ética ao ponto de – como diz Aristófanes – “com uma moeda de cebolas, colocar no bolso toda a Assembleia”.
A comédia da política ateniense continua denunciando assim a tragédia e ainda a farsa de tanta política contemporânea, que muitas vezes parece mais um mercado lotado de salsicheiros, fregueses e o toma-lá-dá-cá das cebolas.
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