O presidente Michel Temer cometeu uma sucessão de erros na condução da crise dos caminhoneiros. O movimento que parou vários setores no país uniu empresários, empregados e motoristas autônomos em uma mesma causa. A insatisfação generalizada fez com que a população, mesmo diante de problemas no cotidiano causados pela greve, apoiasse a iniciativa. Essas são algumas das conclusões do professor da Unicamp Ricardo Antunes, uma das principais referências do país na chamada sociologia do trabalho, ramo das ciências sociais que estuda as relações nesse universo.
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Para Antunes, o governo demorou a identificar a insatisfação dos caminhoneiros e transportadores, cujos sinais já eram dados desde o ano passado. Além disso, diz o acadêmico, negociou com quem não representava a categoria, declarou-se vitorioso antes da hora e, ainda, desafiou os manifestantes ao chamá-los de minoria radical.
“Não é possível que o governo não tenha informação que diga previamente que tem quadro tenso nas estradas. Um governo inteligente chamaria o empresariado para negociar. O governo conseguiu empurrar para o mesmo movimento as empresas e os trabalhadores autônomos”, ressalta. “Os caminhoneiros querem a cabeça de Temer. Pedir sacrifício nessa altura para um governo que não se sacrifica por ninguém, só para os ricos, é uma piada”, acrescenta.
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Na avaliação do sociólogo, uma combinação explosiva de fatores mergulhou o governo em sua mais profunda crise: a política de preços dos combustíveis adotada pela Petrobras, o desemprego crescente, o descontentamento da população com a economia e os intermináveis escândalos políticos.
Foi por causa desse conjunto de insatisfações, observa, que o movimento não cessou nem mesmo após o governo e representantes de entidades da categoria anunciarem um acordo. “Se o país estivesse em um momento normal, o movimento teria se encerrado no segundo acordo. Mas aí se abre um terceiro elemento. Essa greve, além da impulsão patronal pelo locaute, teve grande adesão espontânea do caminhoneiro que não se vê representado por essas entidades.”
Para entender o movimento, afirma o professor, é preciso compreender as particularidades dos caminhoneiros – uma categoria heterogênea, que tem a capacidade de parar o país por monopolizar o transporte de cargas e tem pensamento predominantemente conservador. Reside aí, segundo Ricardo Antunes, o lado mais perigoso do movimento: a presença de grupos de extrema-direita que defendem a intervenção militar.
“Os movimentos de direita e extrema-direita, incentivados pelos bolsonaros da vida, acabam dizendo que a resolução da tragédia social é a tragédia da política que é a ditadura”, explica. “O momento agora é de eleições. Qualquer outra coisa agora é jogar lenha na fogueira onde a gasolina, o querosene, o diesel e o álcool estão esparramados.”
Veja os principais trechos da entrevista de Ricardo Antunes ao Congresso em Foco:
Como o senhor classifica esse movimento dos caminhoneiros? Que características o distinguem de outros feitos anteriormente?
Os caminhoneiros sempre foram uma categoria muito particular quando comparada, por exemplo, aos bancários, trabalhadores rurais, professores etc. Essa tendência muito particular se deve a algumas características principais. Primeiro, é um movimento bastante heterogêneo, porque aglutina trabalhadores que são motoristas contratados pelo sistema CLT pelas empresas, mais os motoristas autônomos e aqueles que têm a aparência de autônomos, mas trabalham sob o comando de uma empresa. Esse é o primeiro traço para entender a categoria.
Qual é o segundo?
O segundo elemento é que esse setor no Brasil monopoliza o sistema de transporte de mercadorias, enquanto em outros países europeus e de outros continentes há um sistema rodoviário que coexiste com o ferroviário e o de navegação fluvial. Nisso há certa similitude com os bancários e os petroleiros.
Por quê?
Eles parando, a economia do país tende a entrar em colapso em poucos dias. Em 1985, por exemplo, a greve dos bancários mobilizou entre 800 mil e 1 milhão de funcionários. Em poucos dias o governo cedeu em uma negociação porque, senão, a economia ficava paralisada. O mesmo vale para os petroleiros, que também têm o monopólio em uma atividade econômica.
Qual o terceiro?
O terceiro traço constitutivo da categoria dos caminhoneiros – e isso não é uma regra absoluta, mas uma tendência – é que eles têm uma feição predominantemente mais conservadora. O quarto ponto é que, ao mesmo tempo em que eles competem entre si, há uma sociabilidade, uma solidariedade que nasce no seu espaço de trabalho, que é a rodovia. Temos hoje um movimento complexo. Só estudos concretos é que vão permitir análises mais precisas.
O movimento atual, então, tem uma dimensão dual. Por um lado, é locaute porque tem grandes empresas até com centenas de caminhões ligadas ao agronegócio e a vários ouros ramos. Inicialmente descontentes com a política do preço do combustível, desencadearam o processo em que o empregador diz: “Vá para lá, forme fila e pare o caminhão. Você tem respaldo da empresa para fazer isso”. Isso configura locaute patronal, quando o empresário quer virar a mesa. Outro elemento importante que conflui com esse é uma política de petróleo absurda. Ouvi depoimento de um trabalhador autônomo dizendo que sai de Porto Alegre com um preço x. Chegando a Curitiba o custo é maior. Chegando a São Paulo é mais alto. Chegando a Brasília ou Goiânia, mais alto ainda. Ninguém consegue ter um mínimo de plano.
Mas qual o papel histórico dos caminhoneiros nas greves?
Primeiro, é preciso compreender bem as particularidades do caminhoneiros. A CNT (Confederação Nacional do Transporte) dizia em 2016 que, entre 53% e 54% desse contingente, era composto por trabalhadores assalariados das empresas de transportes e 46% por autônomos. Estudos mais recentes reduzem mais um pouco os autônomos. Política e Ideologicamente, é muito raro que esses movimentos se somem às causas grevistas em processos revolucionários. Os caminhoneiros têm, em geral, uma força muito grande. Foi assim nos Estados Unidos e no Chile, onde precipitaram o movimento que resultou no golpe contra o presidente Salvador Allende. No caso dos autônomos, eles são espécie de proprietários de si mesmos, mas também proletários de si mesmos. Ele é dono do caminhão, mas se sujeita ao frete, à quilometragem e ao trabalho que as empresas indicam. O seu ideário é predominantemente conservador e mais suscetível a chamamentos da direita. Mas suas condições de trabalho são caracterizadas por jornadas intensas, baixa remineração, acidentes, mortes etc.
Como chegamos a essa situação?
A política da Petrobrás foi o principal elemento causador de uma crise (econômica, social e política) que atingiu o setor. Se adicionarmos que temos cerca de 14 milhões de desempregados, de acordo com dados oficiais, mais 4,7 milhões de desempregados por desalento, que não entram na estatística como desempregados, são quase 20 milhões de pessoas sem trabalho. Além disso, há um contingente expressivo de trabalhadores intermitentes, precários, ocasionais. Tudo isso chega a quase 30 milhões. Estamos numa situação econômica de recessão profunda e crise política mais grave desde Collor.
Nem no governo Dilma houve algo parecido com isso. A crise política se acentuou quando houve decisão dos núcleos dominantes, a partir de 2013/4, começaram a romper gradativamente o apoio aos governos do PT. Anteriormente, apoiaram vivamente os governos do PT, porque se enriqueceram muito. A partir de um dado momento, com o aprofundamento da crise, o quadro mudou.
Por que é pior?
O governo Temer tem níveis muito mais baixos que Dilma em seu pior momento. E mais, não é legitimado por eleições. Está enredado em teia de denúncias de corrupção por todos os lados. Tudo isso deu aquela faísca, o estalo: a política da Petrobras, o descontentamento, o desemprego alto e os movimentos de direita e extrema-direita incentivados pelos bolsonaros da vida que acabam dizendo que a resolução da tragédia social é impor a tragédia política defendendo o golpe e a volta da ditadura militar.
O senhor considera que esse movimento ainda é dos caminhoneiros ou foi tomado por outros interesses e grupos?
Quando Temer fez pronunciamento na TV, no domingo, ele falou que “grupos minoritários radicais” tinham tomado conta do movimento. Grupos radicais, como assim? Naquele momento eram caminhoneiros autônomos que predominavam nas estradas, ainda que muitos deles – majoritariamente talvez – defendesse a volta da ditadura. Os caminhoneiros não aceitaram o acordo. Não queriam dez centavos a menos. Como uma “minoria radical” é capaz de encerrar uma paralisação e também um locaute que eram muito abrangentes? O que de fato ocorreu foi que o governo Temer fez acordo com parcela do peleguismo sindical e patronal que não representavam a massa nas estradas. Pura incompetência de um governo ilegítimo em fim de mandato. …
Por que o movimento não cessou logo após o anúncio desse segundo acordo?
Porque esse discurso de acusação de radicalização irritou ainda mais o movimento que não aceitou o primeiro acordo e se fortaleceu para exigir um segundo acordo. O segundo acordo foi vitória expressiva das empresas e dos caminhoneiros. Só através de pesquisas e estudos desse movimento poderemos saber qual desses setores esteve à frente e em que momentos.Se o país estivesse em um momento normal, o movimento teria se encerrado no segundo acordo. Mas aí se abre um terceiro elemento. Essa greve, além da impulsão patronal pelo locaute, teve grande adesão espontânea do caminhoneiro que não se vê representado por essas entidades. E que viram a possibilidade de exigir ainda mais.
O que há por trás desse movimento?
Há setores amplamente majoritários que defendem intervenção militar, mas apareceram outros (minoritários) que defendem eleições gerais, que defendem o “fora Temer” e o “Lula livre”, especialmente coma deflagração da greve dos petroleiros nas refinarias. Abriu-se uma ação pelo espolio político do movimento no final da festa. Quem vai ficar com o saldo político dele? Parece muito real que grupos golpistas passaram a atuar mais incisivamente. Houve por certo ampla adesão espontânea dos caminhoneiros autônomos, mas desde o ano passado que as empresas de transportes mandaram dizer que a coisa estava ruim e indicavam a possibilidade paralisação patronal, com aparência de greve mas resultado de ação de locaute. O governo Temer, em meio a tantas contradições, denúncias de corrupções, desconsiderou essa possibilidade . Houve uma absoluta e completa incapacidade para compreender um problema dessa gravidade num setor monopolizado e vital. Sem circulação de mercadorias o país para.
Como o senhor avalia a atuação do governo nas negociações? Que erros foram cometidos?
Foram muitos erros. O primeiro eu indiquei acima. Mas houve muitos outros. Se muitos dos setores envolvidos na paralisação pedem intervenção militar, e o governo chama o Exército para reprimir, o erro é crasso. Os militarem vão pensar duas vezes antes de bater em quem os defende. O isolamento político, a falta de legitimidade do governo Temer é tão aguda que nem Collor chegou a esse nível de incompreensão. Não é por acaso que a reprovação social do Temer se esparrama em todas as camadas sociais… Mesmo setores do empresariado que, até ontem, diziam que Temer é um governo corrupto, mas que faz o que nós mandamos, estão hoje muito preocupados porque os seus candidatos não decolam. O único candidato do campo ultraconservador [Jair Bolsonaro] que decola nas pesquisas, é fascista mas não conta com o apoio pleno – até o presente – dessa classe dominante.
Mas ele pode virar essa alternativa?
Pode ser que vire alternativa, as classes dominantes fecham com qualquer um, quando lhes falta a sua alternativa. Vide o exemplo de Collor. Não é possível que o governo não tenha informação que digam previamente que tem quadro tenso nas estradas. Um governo burguês inteligente chamaria o empresariado para negociar, por um lado, isolando-o dos caminhoneiros autônomos. O governo conseguiu empurrar para o mesmo movimento as empresas e os trabalhadores autônomos. Alguém imagina que o Exército e a polícia estão qualificados militarmente para enfrentar um movimento de mais de 2 milhões de caminhoneiros sem matança generalizada?
O governo anunciou duas vezes que o acordo selava o fim da greve e isso não ocorreu. Por quê?
Temer não soube se antecipar, negociou com quem não representava a categoria, cantou vitória quando o jogo estava cinco a zero para os caminhoneiros. Parecia a Alemanha no sete a um. Tomou um gol atrás do outro. Chamou de minoria radical uma massa ampla de caminhoneiros. Resultado: os caminhoneiros botaram mais gente na rua e passaram a exigir a cabeça de Temer. E pedir sacrifico nessa altura, para um governo que não se sacrifica pelos trabalhadores, mas só para os ricos, é uma piada.
O fato de essa greve estar se arrastando – e haver problemas que mexem com o cotidiano, a alimentação e a saúde das pessoas – pode botar a opinião pública contra os caminhoneiros?
Um dos elementos de força desse movimento é que todos sentem essa política de preço do combustível. Isso fez com que a população simpatizasse majoritariamente com o movimento. Na medida em que as demandas foram aceitas pela força do movimento e ele não retrocede, o apoio começa a transbordar em descontentamento. Isso começa a aumentar o movimento contrário. Até Bolsonaro hoje diz que agora é hora de parar. Ele sabe também que daqui para frente pode não ter controle nenhum.
Há alguma relação entre esse movimento grevista e os protestos de 2013?
Em profundidade, não. Lá começou com passe livre, mas houve uma coisa diferente de agora. 2013 foi a conjugação de cenário internacional em rebelião com um descontentamento com a Copa das Confederações. A população pobre percebeu que tinha dinheiro para grandes corporações, mas não para a saúde e a educação, por exemplo. Os pobres não podiam nem vender seu sustento na beira dos estádios. Houve um branqueamento e elitização dos estádios no Brasil. O futebol deixou de ser de massa. Há especialistas na internet que mensuraram que, no primeiro momento, aqueles protestos de junho eram chamados pelos movimentos sociais ligados à esquerda, mas aos poucos passaram a ser galvanizado pela direita. O movimento dos caminhoneiros tem uma trajetória bem diferente.
Quais as diferenças?
Nasce de uma categoria, a dos caminhoneiros, com a condução ou incentivo dos empresários do setor. Aquele não era um ramo de atividade, começou com a juventude. O que há em comum é que ambos os momentos são de crise profunda, com diferença que em 2013 a crise era profunda no cenário global, com muitas rebeliões em toda parte. Em 2018 estamos no fundo do poço de uma profunda crise política, que tem perfil ultraconservador e mesmo contrarrevolucionário, quando se olha também o cenário global.
Qual o papel das redes sociais, do Whatsapp, no movimento grevista dos caminhoneiros? Foi determinante?
Agora, no caos organizacional do nosso tempo, em que partidos e sindicatos perderam o papel de prevalência que tinham nos movimentos sociais em geral, o whatsapp acaba sendo um veículo forte, especialmente para as categorias que se recentem de organização sindical. Aí também entra o fake news. E esse meio de comunicação se torna exponencial, quase incontrolável. Ele só vai perder essa capacidade de expandir e dar notícias falsas quando parte majoritariamente desse segmento conseguir furar o bloqueio do patronato e se diferenciar dos grupos de extrema-direita, que passaram a dizer, depois do segundo acordo: “Já ganhamos tudo, agora só falta chamar os militares”. Será que este ainda é o país da farsa e da tragédia?
O senhor vê a possibilidade de uma intervenção militar?
O momento agora é de eleições. Qualquer outra coisa agora é jogar lenha na fogueira onde a gasolina, o querosene, o diesel e o álcool estão esparramados. Fora do regramento democrático não é possível aceitar nenhuma variante de golpe, nem parlamentarismo, e o gole militar e a ditadura devem ser repudiada. Estamos vivendo um período regressivo da história. Temos hoje no Brasil quatro ou cinco agraciados, que, sob as bênçãos dos deuses (ou será dos demônios?), ganham o que 100 milhões de brasileiros produzem. Isso deveria ser objeto de reflexão e contestação visceral. Temer não é uma ilha isolada em um mundo cuja desordem está absolutamente no centro da ordem. E deve ser fragorosamente derrotado nas eleições de outubro.
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O segundo elemento é que esse setor no Brasil monopoliza o sistema de transporte de mercadorias, enquanto em outros países europeus e de outros continentes há um sistema rodoviário que coexiste com o ferroviário e o de navegação fluvial. Nisso há certa similitude com os bancários e os petroleiros. Por quê?
Eles parando, a economia do país tende a entrar em colapso em poucos dias. Em 1985, por exemplo, a greve dos bancários mobilizou entre 800 mil e 1 milhão de funcionários. Em poucos dias o governo cedeu em uma negociação porque, senão, a economia ficava paralisada. O mesmo vale para os petroleiros, que também têm o monopólio em uma atividade econômica. Qual o terceiro?
O terceiro traço constitutivo da categoria dos caminhoneiros – e isso não é uma regra absoluta, mas uma tendência – é que eles têm uma feição predominantemente mais conservadora. O quarto ponto é que, ao mesmo tempo em que eles competem entre si, há uma sociabilidade, uma solidariedade que nasce no seu espaço de trabalho, que é a rodovia. Temos hoje um movimento complexo. Só estudos concretos é que vão permitir análises mais precisas. O movimento atual, então, tem uma dimensão dual. Por um lado, é locaute porque tem grandes empresas até com centenas de caminhões ligadas ao agronegócio e a vários ouros ramos. Inicialmente descontentes com a política do preço do combustível, desencadearam o processo em que o empregador diz: “Vá para lá, forme fila e pare o caminhão. Você tem respaldo da empresa para fazer isso”. Isso configura locaute patronal, quando o empresário quer virar a mesa. Outro elemento importante que conflui com esse é uma política de petróleo absurda. Ouvi depoimento de um trabalhador autônomo dizendo que sai de Porto Alegre com um preço x. Chegando a Curitiba o custo é maior. Chegando a São Paulo é mais alto. Chegando a Brasília ou Goiânia, mais alto ainda. Ninguém consegue ter um mínimo de plano. Mas qual o papel histórico dos caminhoneiros nas greves?
Primeiro, é preciso compreender bem as particularidades do caminhoneiros. A CNT (Confederação Nacional do Transporte) dizia em 2016 que, entre 53% e 54% desse contingente, era composto por trabalhadores assalariados das empresas de transportes e 46% por autônomos. Estudos mais recentes reduzem mais um pouco os autônomos. Política e Ideologicamente, é muito raro que esses movimentos se somem às causas grevistas em processos revolucionários. Os caminhoneiros têm, em geral, uma força muito grande. Foi assim nos Estados Unidos e no Chile, onde precipitaram o movimento que resultou no golpe contra o presidente Salvador Allende. No caso dos autônomos, eles são espécie de proprietários de si mesmos, mas também proletários de si mesmos. Ele é dono do caminhão, mas se sujeita ao frete, à quilometragem e ao trabalho que as empresas indicam. O seu ideário é predominantemente conservador e mais suscetível a chamamentos da direita. Mas suas condições de trabalho são caracterizadas por jornadas intensas, baixa remineração, acidentes, mortes etc. Como chegamos a essa situação?
A política da Petrobrás foi o principal elemento causador de uma crise (econômica, social e política) que atingiu o setor. Se adicionarmos que temos cerca de 14 milhões de desempregados, de acordo com dados oficiais, mais 4,7 milhões de desempregados por desalento, que não entram na estatística como desempregados, são quase 20 milhões de pessoas sem trabalho. Além disso, há um contingente expressivo de trabalhadores intermitentes, precários, ocasionais. Tudo isso chega a quase 30 milhões. Estamos numa situação econômica de recessão profunda e crise política mais grave desde Collor. Nem no governo Dilma houve algo parecido com isso. A crise política se acentuou quando houve decisão dos núcleos dominantes, a partir de 2013/4, começaram a romper gradativamente o apoio aos governos do PT. Anteriormente, apoiaram vivamente os governos do PT, porque se enriqueceram muito. A partir de um dado momento, com o aprofundamento da crise, o quadro mudou. Por que é pior?
O governo Temer tem níveis muito mais baixos que Dilma em seu pior momento. E mais, não é legitimado por eleições. Está enredado em teia de denúncias de corrupção por todos os lados. Tudo isso deu aquela faísca, o estalo: a política da Petrobras, o descontentamento, o desemprego alto e os movimentos de direita e extrema-direita incentivados pelos bolsonaros da vida que acabam dizendo que a resolução da tragédia social é impor a tragédia política defendendo o golpe e a volta da ditadura militar. O senhor considera que esse movimento ainda é dos caminhoneiros ou foi tomado por outros interesses e grupos?
Quando Temer fez pronunciamento na TV, no domingo, ele falou que “grupos minoritários radicais” tinham tomado conta do movimento. Grupos radicais, como assim? Naquele momento eram caminhoneiros autônomos que predominavam nas estradas, ainda que muitos deles – majoritariamente talvez – defendendesses a volta da ditadura. Os caminhoneiros não aceitaram o acordo. Não queriam dez centavos a menos. Como uma “minoria radical” é capaz de encerrar uma paralisação e também um locaute que eram muito abrangentes? O que de fato ocorreu foi que o governo Temer fez acordo com parcela do peleguismo sindical e patronal que não representavam a massa nas estradas. Pura incompetência de um governo ilegítimo em fim de mandato. … Por que o movimento não cessou logo após o anúncio desse segundo acordo?
Porque esse discurso de acusação de radicalização irritou ainda mais o movimento que não aceitou o primeiro acordo e se fortaleceu para exigir um segundo acordo. O segundo acordo foi vitória expressiva das empresas e dos caminhoneiros. Só através de pesquisas e estudos desse movimento poderemos saber qual desses setores esteve à frente e em que momentos.Se o país estivesse em um momento normal, o movimento teria se encerrado no segundo acordo. Mas aí se abre um terceiro elemento. Essa greve, além da impulsão patronal pelo locaute, teve grande adesão espontânea do caminhoneiro que não se vê representado por essas entidades. E que viram a possibilidade de exigir ainda mais. O que há por trás desse movimento?
Há setores amplamente majoritários que defendem intervenção militar, mas apareceram outros (minoritários) que defendem eleições gerais, que defendem o “fora Temer” e o “Lula livre”, especialmente coma deflagração da greve dos petroleiros nas refinarias. Abriu-se uma ação pelo espolio político do movimento nofinal da festa. Quem vai ficar com o saldo político dele? Parece muito real que grupos golpistas passaram a atuar mais incisaivamente. Houve por certo ampla adesão espontânea dos caminhoneiros autônomos, mas desde o ano passado que as empresas de transportes mandaram dizer que a coisa estava ruim e indicavam a possibilidade paralisação patronal, com aparência de greve mas resultado de ação de locaute. O governo Temer, em meio a tantas contradições, denúncias de corrupções, desconsiderou essa possibilidade . Houve uma absoluta e completa incapacidade para compreender um problema dessa gravidade num setor monopolizado e vital. Sem circulação de mercadorias o país para. – Como o senhor avalia a atuação do governo nas negociações? Que erros foram cometidos? Foram muitos erros. O primeiro eu indiquei acima. Mas houve muitos outros. Se muitos dos setores envolvidos na paralisação pedem intervenção militar, e o governo chama o Exército para reprimir, o erro é crasso. Os militarem vão pensar duas vezes antes de bater em quem os defende. O isolamento político, a falta de legitimidade do governo Temer é tão aguda que nem Collor chegou a esse nível de incompreensão. Não é por acaso que a reprovação social do Temer se esparrama em todas as camadas sociais… Mesmo setores do empresariado que, até ontem, diziam que Temer é um governo corrupto, mas que faz o que nós mandamos, estão hoje muito preocupados porque os seus candidatos não decolam. O único candidato do campo ultraconservador [Jair Bolsonaro] que decola nas pesquisas, é fascista mas não conta com o apoio pleno – até o presente – dessa classe dominante. Mas ele pode virar essa alternativa? Pode ser que vire alternativa, as classes dominantes fecham com qualquer um, quando lhes falta a sua alternativa. Vide o exemplo de Collor. Não é possível que o governo não tenha informação que digam previamente que tem quadro tenso nas estradas. Um governo burguês inteligente chamaria o empresariado para negociar, por um lado, isolando-o dos caminhoneiros autônomos. O governo conseguiu empurrar para o mesmo movimento as empresas e os trabalhadores autônomos. Alguém imagina que o Exército e a polícia estão qualificados militarmente para enfrentar um movimento de mais de 2 milhões de caminhoneiros sem matança generalizada? O governo anunciou duas vezes que o acordo selava o fim da greve e isso não ocorreu. Por quê?
Temer não soube se antecipar, negociou com quem não representava a categoria, cantou vitória quando o jogo estava cinco a zero para os caminhoneiros. Parecia a Alemanha no sete a um. Tomou um gol atrás do outro. Chamou de minoria radical uma massa ampla de caminhoneiros. Resultado: os caminhoneiros botaram mais gente na rua e passaram a exigir a cabeça de Temer. E pedir sacrifico nessa altura, para um governo que não se sacrifica pelos trabalhadores, mas só para os ricos, é uma piada. O fato de essa greve estar se arrastando – e haver problemas que mexem com o cotidiano, a alimentação e a saúde das pessoas – pode botar a opinião pública contra os caminhoneiros?
Um dos elementos de força desse movimento é que todos sentem essa política de preço do combustível. Isso fez com que a população simpatizasse majoritariamente com o movimento. Na medida em que as demandas foram aceitas pela força do movimento e ele não retrocede, o apoio começa a transbordar em descontentamento. Isso começa a aumentar o movimento contrário. Até Bolsonaro hoje diz que agora é hora de parar. Ele sabe também que daqui para frente pode não ter controle nenhum. Há alguma relação entre esse movimento grevista e os protestos de 2013?
Em profundidade, não. Lá começou com passe livre, mas houve uma coisa diferente de agora. 2013 foi a conjugação de cenário internacional em rebelião com um descontentamento com a Copa das Confederações. A população pobre percebeu que tinha dinheiro para grandes corporações, mas não para a saúde e a educação, por exemplo. Os pobres não podiam nem vender seu sustento na beira dos estádios. Houve um branqueamento e elitização dos estádios no Brasil. O futebol deixou de ser de massa. Há especialistas na internet que mensuraram que, no primeiro momento, aqueles protestos de junho eram chamados pelos movimentos sociais ligados à esquerda, mas aos poucos passaram a ser galvanizado pela direita. O movimento dos caminhoneiros tem uma trajetória bem diferente. Quais as diferenças?
Nasce de uma categoria, a dos caminhoneiros, com a condução ou incentivo dos empresários do setor. Aquele não era um ramo de atividade, começou com a juventude. O que há em comum é que ambos os momentos são de crise profunda, com diferença que em 2013 a crise era profunda no cenário global, com muitas rebeliões em toda parte. Em 2018 estamos no fundo do poço de uma profunda crise política, que tem perfil ultraconservador e mesmo contrarrevolucionário, quando se olha tambémo cenário global. Qual o papel das redes sociais, do whatsapp, no movimento grevista dos caminhoneiros? Foi determinante?
Agora, no caos organizacional do nosso tempo, em que partidos e sindicatos perderam o papel de prevalência que tinham nos movimentos sociais em geral, o whatsapp acaba sendo um veículo forte, especialmente para as categorias que se recentem de organização sindical. Aí também entra o fake news. E esse meio de comunicação se torna exponencial, quase incontrolável. Ele só vai perder essa capacidade de expandir e dar notícias falsas quando parte majoritariamente desse segmento conseguir furar o bloqueio do patronato e se diferenciar dos grupos de extrema-direita, que passaram a dizer, depois do segundo acordo: “Já ganhamos tudo, agora só falta chamar os militares”. Será que este ainda é o país da farsa e da tragédia? O senhor vê a possibilidade de uma intervenção militar? O momento agora é de eleições. Qualquer outra coisa agora é jogar lenha na fogueira onde a gasolina, o querosene, o diesel e o álcool estão esparramados. Fora do regramento democrático não é possível aceitar nenhuma variante de golpe, nem parlamentarismo, e o gole militar e a ditadura devem ser repudiada. Estamos vivendo um período regressivo da história. Temos hoje no Brasil quatro ou cinco agraciados, que, sob as bênçãos dos deuses (ou será dos demônios?), ganham o que 100 milhões de brasileiros produzem. Isso deveria ser objeto de reflexão e contestação visceral. Temer não é uma ilha isolada em um mundo cuja desordem está absolutamente no centro da ordem. E deve ser fragorosamente derrotado nas eleições de outubro.