“O surrealismo ou sobrerrealismo foi um movimento artístico e literário nascido em Paris na década de 1920, inserido no contexto das vanguardas que viriam a definir o modernismo no período entre as duas Grandes Guerras Mundiais. Reúne artistas anteriormente ligados ao dadaísmo ganhando dimensão mundial. Fortemente influenciado pela Psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939), o surrealismo enfatiza o papel do inconsciente na atividade criativa. Um dos seus objetivos foi produzir uma arte que, segundo o movimento, estava sendo destruída pelo racionalismo. O poeta e crítico André Breton (1896-1966) era o principal líder e mentor deste movimento” (fonte: pt.wikipedia.org).
O adjetivo surreal faz parte do vernáculo com o sentido de absurdo, incongruente, incoerente, ilógico, estranho, bizarro, esquisito, que não se enquadra na realidade.
No Brasil, que não é uma terra para amadores, é preciso afirmar e repetir à exaustão, temos uma vertente inovadora do movimento antes destacado. Trata-se do surrealismo constitucional.
Nos últimos tempos foram ouvidas e lidas as mais claras manifestações do referido surrealismo constitucional. Afinal, não podem escapar dessa qualificação as seguintes ideias ou expressões: “poder moderador (militar)”, “golpe constitucional”, “intervenção militar constitucional” e outras nessa linha.
O mais recente capítulo do surrealismo constitucional é o chamamento do Supremo Tribunal Federal para afirmar as “mais óbvias das obviedades”: a) existem, só e somente só, três Poderes no Estado brasileiro (Legislativo, Executivo e Judiciário); b) as Forças Armadas não são um Poder do Estado; c) as Forças Armadas não desempenham um papel moderador sobre os Poderes do Estado e d) não existe o mais mínimo espaço institucional para um “golpe constitucional” ou “intervenção constitucional” por parte das Forças Armadas.
Essas conclusões podem ser facilmente extraídas da simples leitura do texto da Constituição de 1988 e de qualquer livro ou manual de Direito Constitucional. Não conheço nenhuma publicação, minimamente séria sob o critério científico-acadêmico, que sustente estar consagrada na ordem jurídica brasileira qualquer uma dessas presepadas constitucionais.
A situação é tão inusitada que é extremamente desgastante o consumo de tempo na produção de argumentos para demonstrar a impossibilidade dessas soluções pretorianas tresloucadas. Seria como explicar que o fogo é quente, a água é molhada, o gelo é frio, a Terra orbita o Sol ou que a Terra não é plana (aqui temos alguma complicação).
Ocorre que o impensável no plano jurídico-constitucional não se coloca necessariamente como um óbice no plano da ação política de indivíduos motivados pelas mais abjetas visões de mundo. Algumas dessas pessoas chegam ao ponto de glorificar torturadores como heróis e fazer apologia das condutas mais bárbaras e censuráveis no convívio humano (discriminações de todos os tipos e modos, ódios e violências físicas e psicológicas como condutas normais e esperadas, supressão pura e simples de direitos e garantias fundamentais duramente conquistadas ao longo de séculos de lutas sociais, entre outras atrocidades).
A sociedade brasileira testemunhou perplexa recentes conspirações palacianas e fortes depredações do patrimônio público voltadas para a implementação de um golpe militar com o intuito de impedir a concretização do resultado das últimas eleições presidenciais.
O destino de toda essa gente, mais cedo ou mais tarde, é o xilindró. Diferente do absurdo da “intervenção militar constitucional”, o ordenamento jurídico qualifica expressamente como crimes os atentados golpistas contra o Estado Democrático de Direito. Basta ler o art. 5o, inciso XLIV da Constituição e os arts. 359-L e 359-M do Código Penal, introduzidos pela Lei n. 14.197, de 2021.
Deve ser destacado, em função dos elementos divulgados na imprensa, que a maior parte dos comandos das Forças Armadas não se dobrou aos apelos golpistas. Prevaleceu a maturidade institucional e a compreensão do verdadeiro papel das Forças Armadas como instituições permanentes do Estado brasileiro, subordinadas ao poder civil, à soberania popular e com limites constitucionais de ação bem delimitados.
Nessa linha, a condição do Presidente da República como comandante supremo das Forças Armadas (art. 84, inciso XIII da Constituição) não autoriza o raciocínio de que a mais importante autoridade pública no Brasil pode (com validade jurídica) ordenar ações golpistas a serem implementadas pelos militares sob sua liderança. É lição comezinha no mundo jurídico que não se cumpre comandos manifestamente ilícitos.
Também não pode ser indevidamente elastecida a possibilidade, prevista na Constituição (art. 142), de “garantia da lei e da ordem” pelas Forças Armadas. Como o próprio Texto Maior destaca, as Forças Armadas não tomam a iniciativa de atuar nessa seara. Somente pela provocação dos poderes constitucionais as Forças Armadas são mobilizadas. Segundo o Ministro Luiz Fux, do STF, cabe ao Exército, Marinha e Aeronáutica “o excepcional enfrentamento de grave e concreta violação à segurança pública, em caráter subsidiário, após o esgotamento dos mecanismos ordinários e preferenciais de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (fonte: estadao.com.br).
Cumpre alertar que tentativas de alterar o art. 142 da Constituição para consagrar expressamente o aludido papel moderador das Forças Armadas, ou mesmo para indicar a possibilidade de uma “intervenção militar”, esbarram inapelavelmente nos óbices inscritos no art. 60, parágrafo quarto, incisos III e IV da Constituição (cláusulas pétreas).
Por fim, registre-se que os princípios ativos das nossas mais profundas transformações socioeconômicas, no rumo da construção de uma sociedade sustentável, democrática, justa e solidária (art. 3o, inciso I da Constituição), não são as Forças Armadas. Esse papel, como corolário da soberania popular (art. 1o, inciso II e parágrafo único da Constituição), está reservado à conscientização, organização e mobilização das mais saudáveis energias populares.