No último capítulo de Frankenstein, o grande clássico de terror criado por Mary Shelley, o criador, dr. Viktor Frankenstein, encontra-se moribundo em um barco encalhado no gelo do Ártico. O comandante do navio, Walton, ouve as suas últimas palavras. Vão aqui alguns trechos selecionados da última fala do dr. Frankenstein:
“Durante os últimos anos, tenho pensado sobre minha conduta passada e não acho que seja condenável. Num acesso de entusiasmada loucura, criei um ser racional e tinha o dever de assegurar-lhe, tanto quanto estivesse em meu poder, a felicidade e o bem-estar. Era essa minha obrigação, mas havia uma outra ainda mais suprema: meus deveres com relação aos seres de minha própria espécie ocupavam-me mais a atenção porque incluíam uma proporção maior de felicidade ou infortúnio”.
Prossegue um pouco mais adiante o criador do monstro:
“Ele demonstrou uma crueldade sem par e um grande egoísmo: destruiu meus amigos; condenou à morte seres felizes, dotados de grande sensibilidade e sabedoria. Não sei onde terminará sua sede de vingança”.
Foi impossível não lembrar do clássico de Mary Shelley e buscar o volume do livro na estante para reproduzir as últimas palavras do dr. Viktor Frankenstein ao ler a entrevista do deputado Junior Bozzella a Edson Sardinha publicada na manhã desta segunda-feira, 1º de agosto, no Congresso em Foco.
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Comparemos alguns trechos da entrevista de Bozella ao falar de Bolsonaro:
Publicidade“As forças democráticas deveriam se unir para enfrentar Bolsonaro. Há um golpe em curso. Não dá para subestimar Bolsonaro, ele já deu prova disso. (…) A questão não é apoiar esquerda, centro-esquerda, temos de ter o foco de impedir a ruptura institucional. Reunir todo mundo em torno de uma candidatura, esse deveria ser o foco. Estamos caminhando para a ruptura institucional, não temos mais para onde correr. (…) Se a natureza não apresentar alternativa, a política vai ter de encontrar. Esse deve ser o nosso esforço. Não é questão de convicção, é questão de necessidade. (…) Bolsonaro vai aglutinando forças. Como está afunilando, ele vai incitando as pessoas ao ódio. (…) Se não aparecer solução, não vai aparecer outro caminho para frear o golpe tramado. O golpe está armado, cai nele quem quer. Ou a gente vai passar ileso? Vai passar neutro?”
Como diz o dr, Frankenstein ao comandante Walton, seu interesse ao criar o monstro, parecia nobre. Ele queria ter o controle sobre a vida. Sobre a finitude. Ao reunir partes de pessoas mortas, faria uma criatura a quem concederia novamente o direito à vida. O problema é que o monstro fugiu do seu controle. Começou a ser cruel. A matar as pessoas. Frankenstein passou, então, à tarefa de conseguir, de alguma forma, desfazer o que fizera.
Seria injusto atribuir ao deputado Junior Bozzella o protagonismo do dr. Viktor Frankenstein. Não há aqui um único criador para a criatura. Mas entre os diversos criadores de Bolsonaro percebe-se agora semelhante arrependimento. Muitos certamente imaginaram ter em torno de si um sentimento nobre. O petrolão é o maior escândalo de corrupção da história. A Operação Lava Jato chegou como nunca se vira no país ao nome de importantes empresários e políticos brasileiros. Desvendou uma complicadíssima relação entre público e privado no país. Estaria imensamente longe de ser verdade afirmar que tudo o que a operação desvendou era injustiça e mentira.
Mas, como o monstro imaginado por Mary Shelley, as coisas foram fugindo do controle. Primeiro, pela insana vaidade dos investigadores, que passaram a considerar que tudo só valeria se conquistassem a cabeça principal: Luiz Inácio Lula da Silva. Vaidade que aumentou quando Sergio Moro aceitou virar ministro da Justiça, escancarando o interesse político. Que ficou mais evidente quando os vazamentos das conversas pelo The Intercept Brasil mostraram como os lances eram combinados entre Moro e os procuradores.
Junta-se a isso o processo de impeachment de uma pessoa que, usando a expressão do ex-presidente Michel Temer, seu vice, que assumiu o poder com a sua queda, era “honestíssima”.
E, finalmente, a ascensão de alguém que nunca escondeu diversas das características que depois apresentaria no comando do país: desapreço pela democracia, intolerância contra diversas minorias, discurso de ódio, incitação à violência.
Os criadores imaginaram que controlariam a criatura. Que o transformariam num afável defensor do liberalismo que professam. Que o ministro da Economia, Paulo Guedes, se valeria da força popular de Bolsonaro para transformar o país na ilha de oportunidades liberais com que sonhavam. Ao final, Bolsonaro é que controlou Guedes. O final de seu governo é um festival de benesses sociais que certamente provocariam imensos arrepios aos professores de Guedes na Universidade de Chicago.
E prevaleceu o que os criadores imaginavam poder controlar: o discurso do ódio, a incitação à violência, o desprezo à ciência e à racionalidade. Milhares de mortos na pandemia ou nos diversos embates: políticos, ambientais. Um país triste, de pessoas apartadas, de famílias divididas, de ex-amigos que não mais se falam. Assustado com a possibilidade de ver solapar sua democracia tão duramente conquistada.
Ao final do clássico de Mary Shelley, o criador entrega sua própria vida. E logo em seguida o mesmo faz a criatura. Espera-se que, por aqui, consigamos obter um final menos trágico e mais feliz a nossa novela.