Eu cresci numa família onde eu tive avó e bisavó presentes na minha vida e na minha criação. Uma das coisas que elas me ensinaram, junto com minha mãe, é a importância de ouvir aqueles que vieram antes de nós. Primeiro porque eles sempre têm histórias para contar, histórias estas que constroem a nossa memória e a nossa ancestralidade. Segundo porque essas pessoas sempre têm alguma coisa para nos ensinar. Por isso venho me colocando numa posição de escuta, em todos os grupos em que estou inserida.
Com esse coletivo, Olhares Negros, não seria diferente. Como somos um coletivo composto por mulheres negras de diferentes idades e contextos, a produção coletiva que fazemos aqui, além de ampliar vozes de experiências que foram historicamente silenciadas, se constitui através de um espaço de troca, escuta, acolhimento e afeto. Através desse espaço de trocas, ouvir as experiências de Helena Theodoro semanalmente, tem sido um privilégio imenso para a “jovem a menos tempo” que está escrevendo esse texto.
Conheci Helena primeiro através do meu pai, que contava algumas histórias sobre ela. Depois tive contato com ela através dos livros, enquanto estava fazendo uma análise de um material que compunha um projeto educativo itinerante de um museu aqui do Rio de Janeiro e me deparei com as obras “Os Ibejis e o Carnaval” e “Iansã, rainha dos ventos e das tempestades”. Durante a minha formação como historiadora, entendi a importância que ela tem na luta das mulheres negras no Brasil e virei fã do trabalho dela. Com o Olhares negros, conheci a Helena, primeiro virtualmente por conta da pandemia, depois pessoalmente. Hoje, além dela fazer parte da minha banca de mestrado, eu tenho o privilégio de ter ela como amiga, graças ao encontro desse grupo. Amiga esta que não é mais velha que eu, é apenas “jovem a mais tempo” e está sempre disposta a ouvir o que nós temos para compartilhar de uma forma muito carinhosa.
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Tijucana, salgueirense, filha única de pais militantes, mãe, avó, professora e pesquisadora, ela teve uma infância diferente da maioria da população negra, em um bairro de classe média, cuja maioria dos moradores, até hoje, são pessoas brancas. Além disso, veio de uma família que lutava contra esse sistema racista que segue violando os direitos e violentando os corpos de pessoas negras. Seus pais a criaram tendo acesso a vários espaços de discussão e resistência da cultura negra no Brasil, como o Renascença clube e a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro (onde foi uma das autoras do enredo “Resistência”, do carnaval de 2022).
Para além da admiração, eu me identifico com a história da Helena, já que eu cresci com pais militantes e tive boa parte da minha educação em uma escola particular na Tijuca. Assim como ela, isso me fez circular não só em espaços e eventos voltados para a cultura negra, mas em lugares que são interditados para essas pessoas até hoje. Diante disso, como arrombar as portas e trazer os nossos para os lugares que nos foram negados historicamente? Penso que Helena vem fazendo isso ao longo de toda a sua trajetória, abrindo caminhos para negras e negros da sua geração e para todos nós que viemos depois.
Helena é Bacharel em direito, pedagoga mestre em educação, doutora em filosofia e pós-doutora em história comparada, conselheira do Fundo Elas, professora da UFRJ, e colunista do Congresso em Foco. Começou sua carreira na rádio MEC, aos 15 anos, onde foi redatora, produtora e apresentadora de vários programas educativos, culturais, musicais e infantis, como o “Samba na palma da mão” e “Origens”. Na década de 1970, foi a primeira coordenadora do projeto Minerva, um projeto de educação à distância através do rádio. Foi a primeira mulher negra a conquistar o título de doutora em Filosofia. Esse título veio através da Universidade Gama Filho, em 1985, sendo ela a primeira intelectual brasileira também e escrever uma tese cuja base é a filosofia africana, intitulada “O negro no espelho”.
PublicidadeA história pessoal, profissional e acadêmica de Helena Theodoro representa a luta pela valorização e respeito às tradições de matriz africana e às culturas concebidas na diáspora negra. Nossa colunista vem construindo um legado muito rico, ao exaltar com maestria a educação, as artes, o samba, filosofias afro-diaspóricas, religiosidades africanas e afro-brasileiras, a liberdade dos nossos corpos e pensamentos.
Já que as nossas histórias foram apagadas das narrativas dos livros, cabe a nós (e aos nossos) resgatar nossa memória ancestral e contar as nossas próprias histórias. A história de Helena Theodoro precisa ser contada dentro e fora dos espaços acadêmicos, assim como estamos fazendo com Beatriz Nascimento, Lélia González, e outros intelectuais negros. Todas as pessoas deveriam conhecer a Helena, seja pessoalmente, através das suas produções literárias e acadêmicas, das suas escrevivências, de seus enredos ou de relatos. Ela é referência na história da luta das mulheres negras nesse país e tem sido, para mim, uma jovem acadêmica de 28 anos, uma enorme referência de vida. É uma honra poder compartilhar esse mundo com ela, que completou 80 anos essa semana, no dia 12 de junho.
Há alguns meses ela vem recebendo as mais variadas homenagens e a nossa coluna não podia ficar sem celebrar a imensidão que é Helena Theodoro. Estendo essa homenagem à minha vó, Helena Corrêa, que assim como Helena Theodoro fez aniversário essa semana e vem me ensinando a importância de respeitar nossa história, nossos ciclos e nossos corpos e nossas escolhas, que nunca é tarde para aprender, e que nós podemos nos reinventar quantas vezes for preciso. Eu só tenho a agradecer por isso. Feliz vida à Helena!