Em 5 de fevereiro, Muniz Sodré, em artigo publicado na Folha de S.Paulo, “Assassinato de Moïse é sintoma de catástrofe cívica em curso”, lançou uma reflexão profunda sobre o linchamento e assassinato do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe. Muniz inicia seu artigo com um veredito: “o assassinato do jovem congolês a pauladas na beira de uma praia do Rio não é acontecimento singular, mas sintoma de uma catástrofe em curso”, e soma pistas ao percurso de sua reflexão, “abolidas as regras, liberadas as armas, semeou-se a violência como clima moral. O desvario miliciano é o mesmo em palácios ou quiosques: lincham-se instituições ou pessoas”.
De forma complementar, eu diria que esse quadro de barbárie modernizada às luzes do século 21 tem um tipo particular de pessoas como alvos, como presas, como seres disponíveis ao flagelo. O ano de 2022 começou sinistro para pessoas negras, e para homens negros em particular. No Rio de Janeiro, a vida de Moïse foi ceifada como a de Durval Teófilo Filho, em São Gonçalo, no portão de acesso ao condomínio da sua residência e no retorno do trabalho. Do lado de dentro, em casa, esperavam por ele a esposa e a filha de 6 anos. O assassino, ficamos logo sabendo, era um vizinho, Aurélio Alves Bezerra, sargento da Marinha, que ao estilo justiceiro, não teve qualquer dúvida em considerar Durval como uma ameaça e realizar três disparos contra ele, em curtíssima distância. Depreendemos que, para o sargento, as ameaças devem ser eliminadas e assim terminou, em 2 de fevereiro, a vida de Durval, pai e marido.
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A estação das barcas de Niterói é um local de intensa circulação de pessoas, algo como 20 mil passageiros por dia. Na manhã de 12 de fevereiro, esse seria o último lugar frequentado por Hiago Macedo de Oliveira Bastos, quando um policial militar de folga, o sargento Carlos Arnaud Baldez Silva Jr., atirou no peito no peito dele – e um policial sabe muito bem o que um disparo de arma de fogo pode causar no corpo humano ao atirar nessa região.
Segundo relatos de familiares, naquela semana, Hiago tinha uma missão: realizar a festa de aniversário da filha que completaria 2 anos alguns dias depois, esse era o seu objetivo naquela manhã. Tendo esse objetivo nada mais racional que escolher como ponto de venda de balas, a sua mercadoria, um lugar como a estação das barcas e seus mais de 20 mil prováveis passageiros. O que Hiago não podia supor é que sua racionalidade de vendedor ambulante seria confrontada com a irracionalidade e selvageria de seu assassino.
Moïse, Durval e Hiago eram trabalhadores, tinham família e amigos e foram assassinados de tal forma que, na atualidade, a lei jamais irá responder com justiça. A justiça brasileira não tem, ainda, leis que enfrentem situações como essas imputando-as o agravante necessário: o racismo. A situação de trabalho, além da cor, une esses três homens negros. O desespero e a indignação também unem as suas famílias, porque é importante que se diga: eles tinham pessoas queridas que agora convivem com esse estado máximo de violência, o homicídio. Os assassinatos e a brutalidade não calaram seus familiares e essa indignação faz uma diferença enorme nesse contexto – as pessoas sabem, cada vez mais claramente, que essas “coisas” têm as pessoas negras como alvos preferenciais. Os assassinatos de Moïse, Durval e Hiago deixaram, sem qualquer sombra de dúvida, três famílias negras, mais uma vez, à mercê do Estado na expectativa, e jamais na esperança, de que haja a condenação exemplar dos algozes.
Os números relacionados aos homicídios de pessoas negras no Brasil são inadmissíveis. Segundo o Atlas da Violência 2021, coordenado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada e Instituto Jones dos Santos Neves, em 2019, os negros (homens e mulheres) representaram 77% das vítimas de assassinato no país. Em números absolutos esse percentual representa 33.929 pessoas negras assassinadas em apenas um ano. Quando olhamos para a série histórica, também publicada no Atlas da Violência 2021, o assunto é ainda mais estarrecedor. Entre 2009 e 2019, 439.740 pessoas negras foram assassinadas no país – quase meio milhão de pessoas!
PublicidadeSegundo informe divulgado, em 2021, pela Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, a Guerra da Síria (2011-2021) deixou 350.209 mortos naquele país – ou seja, em uma década o Brasil registrou mais pessoas negras assassinadas que na guerra fraticida da Síria. Bachelet mencionou que os números da Guerra da Síria podem estar subestimados, e isso é mesmo possível, mas comparando as mortes daqui e de lá é uma vergonha que, por aqui, ainda tenhamos um excedente de quase 100 mil pessoas negras executadas!
O Atlas da Violência 2021 também apresenta números relacionados ao assassinato de pessoas não negras. Entre 2009 e 2019, 155.374 pessoas não negras foram assassinadas no país. É um escândalo? Sim, é um escândalo, mas escândalo mesmo é a magnitude quando comparamos os destinos de negros e brancos no Brasil. E é por isso que, observando apenas as vítimas negras de 2019 (33.929 pessoas) os organizadores do Atlas apresentem uma outra macabra conclusão: no Brasil a chance de uma pessoa negra ser assassinada é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra.
Essas “chances” são rigorosamente assustadoras e perversas porque, ao fim e ao cabo, elas dizem respeito a uma desumanização e banalização das vidas negras no Brasil, fundamentadas em uma ideologia racista e de inferiorização do ser humano negro – homem ou mulher. E são essas percepções e prática ideológica combinadas que, ao fim e ao cabo, ceifaram as vidas de Moïse, Durval e Hiago. São essas “chances” perturbadoras que ceifaram, no dia 1º de março, as vidas de Alexandre Santos, Clebeson Guimarães e Patrick Sapucaia, todos jovens e negros, na mais recente incursão violenta da polícia militar da Bahia.
A Gamboa de Baixo, em Salvador, comunidade e local de residência dos jovens assassinados, se levantou em protesto no dia 7 de março. As mães, familiares, vizinhos, crianças e ativistas fizeram, diante das circunstâncias, a coisa certa: denunciaram a truculência policial e a tentativa insidiosa de acusar as vítimas de estarem armados e de terem reagido à incursão. No Rio de Janeiro, também houve protesto organizados pelo movimento negro e familiares das vítimas nos casos de Moïse, Durval e Hiago, mas, assustadoramente, sabemos que até o final do ano muitos outros assassinatos e protestos pelos mesmos motivos covardes nos aguardam. Sobre isso, realmente, Muniz Sobre tem toda a razão, “abolidas as regras, liberadas as armas, semeou-se a violência como clima moral.
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