Há uma ameaça pairando sobre nós: a volta dos manicômios. Há quem defenda que a solução para a vida dos portadores de sofrimento mental é o seu internamento, se possível por tempo indeterminado, em hospitais psiquiátricos, os manicômios.
Como o nome “manicômio” não fica bem, dão outro nome qualquer, mais elegante, mais comunitário, que rima com solidariedade ou aconchego. Mas, para eles, não importa o nome, o que importa mesmo é o internamento pelo maior tempo possível.
Nos manicômios, os usuários (vítimas) das drogas estão longe dos olhares e dos ouvidos da sociedade. Não são vistos, e seus gritos de socorro não são ouvidos. É a exclusão e o silêncio, sem o incômodo. Longe das ruas, não existem para a sociedade. Existem só para a pobre e sofredora família, e para o empresário que vai receber do SUS.
O argumento para a volta dos manicômios, sob outras roupagens, é a epidemia de consumo de crack no país. Há ou não essa epidemia? Há uma epidemia de consumo de drogas? Quais são as drogas mais consumidas e que mais matam no Brasil? A resposta a esta última pergunta é fácil, mas quase que ignorada, pois o consumo delas gera lucro, para poucos.
Falam da epidemia de crack, mas poucos falam do consumo de álcool e cigarros. O consumo de ambos é uma verdadeira epidemia. Geram, como todas as drogas, dor, sofrimento e morte.
Vale lembrar que os meios de comunicação, principalmente rádios e TVs, pouco falam dos malefícios do álcool. Afinal, ganham muito dinheiro com a propaganda das bebidas. Álcool e tabaco são drogas lícitas pouco questionadas apesar de serem epidemicamente consumidas e causarem doenças e mortes.
Quanto às drogas ilegais, felizmente são questionadas e debatidas. Alguns, de boa fé, fazem esse debate porque querem uma solução através dos serviços públicos de saúde. Há outros que fazem o debate porque querem, através de serviços privados, ganhar dinheiro.
De qualquer maneira, é bom que esteja ocorrendo o debate. Assim, quem sabe, pela cobrança da sociedade, seja colocada em prática uma política de saúde mental, já debatida ao longo das últimas quatro conferências nacionais de saúde mental realizadas no país, e também definida em lei.
Não farei aqui uma análise exaustiva do nosso aparato legal, mas chamo a atenção para a lei federal de número 10.216, de 6 de abril de 2001, que estabelece e disciplina o atendimento à saúde mental. Porém, antes, chamo a atenção para o fato de esta lei não estar sendo cumprida. Pior: há movimentos para que ela seja mudada ou mesmo desrespeitada.
O artigo 2º da lei, através de seu parágrafo único, define os direitos da pessoa portadora de transtorno mental:
“I – ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;
II – ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;
III – ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;
IV – ter garantia de sigilo nas informações prestadas;
V – ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;
VI – ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;
VII – receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;
VIII – ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;
IX – ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.”
A responsabilidade de assegurar esses direitos, de acordo com o artigo 3º, cabe ao Estado. Cabe a ele desenvolver a política de saúde mental, com a “participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental[…]”.
A internação, conforme o artigo 4º, “em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”, e será feita em serviços que ofereçam “assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros”.
Especialistas e mídia, para o “bem da sociedade e do doente”, desrespeitando toda a legislação e experiências que já deram certo, propõem o retrocesso: o internamento sem passar pelas fases anteriores. Pior: o internamento compulsório.
Sequer se completou, justamente por resistências de tais setores, a Reforma Psiquiátrica, e querem a volta daquilo que ainda não foi abandonado. Querem a volta, e com mais peso, com a mão mais firme, pois agora “há uma epidemia, a da droga”.
Se, antes, os loucos foram o perigo social, agora são os usuários de álcool e principalmente do crack os “perigosos”. São para essas vítimas de sofrimento mental que “especialistas” propõem a segregação e a exclusão social.
Como afirmei acima, o nome manicômio não fica bem, querem algo que dê um aspecto de solidariedade e aconchego. E, nesse sentido, um nome encaixa perfeitamente: “Comunidades terapêuticas”. Elas cumprirão o objetivo que, no geral, buscam – o internamento.
O internamento, fora do estabelecido pela lei 10.216, além de representar o desrespeito aos direitos humanos, representa outro modelo de atenção a saúde mental e não o preconizado pela lei. Esse tema foi exaustivamente debatido na 4ª Conferência Nacional de Saúde Mental, que decidiu com clareza e coragem, em 2010, pela não inclusão das comunidades terapêuticas na rede de serviços do Sistema Único de Saúde (SUS).
Nessa decisão, foi reafirmado que o investimento público deve ser dirigido à criação e ampliação da rede de serviços substitutivos, em defesa dos direitos humanos, da liberdade e da inclusão dos usuários no território. Ou seja, deve ser cumprida a lei 10.216.
Afirma o movimento antimanicomial, com o qual concordo, que não cabem dois modelos na reforma psiquiátrica. Não é possível, financeira e eticamente, sustentá-los. Serviços que trabalham para a construção da inclusão e da liberdade não convivem com os que negam esses direitos.
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