Márcia Denser *
Só pra abaixar a bola e pegando mais leve, aí vai o texto “Um pingo de sensibilidade”, um conto erótico-político, que descreve, com meu popular estilo deliciosamente canalha, um encontro dum senador e uma jovem universitária precisando subir na vida – que será minha próxima coluna, OK?
Este conto foi publicado na antologia Corrupção – 18 Contos em 2002, numa edição da Ateliê Editorial e da ONG Transparência Brasil, para a qual os autores cederam os direitos autorais pela luta contra a corrupção no Brasil. A obra inclui textos de Machado de Assis, Luiz Vilela, Zulmira Ribeiro Tavares, João do Rio, Flávio Moreira da Costa, Moacyr Scliar, Lima Barreto, Nelson de Oliveira, entre outros. A proposta foi incluir textos atemporais, paradigmáticos, dos escritores brasileiros, versando sobre a corrupção na política brasileira entre o começo e o final do século XX.
Então tem tudo a ver com nosso site, né? Unindo o útil ao agradável…
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A que horas você sai do escritório?
Às cinco
E entra na faculdade?
Seis e meia, sete.
Pode chegar um pouquinho atrasada hoje?
Um pouquinho dá.
Eu também não posso demorar, tenho um jantar chato às oito com a delegação comercial alemã…
O senhor é ocupado, entendo.
Senhor, não, me chama de Paulo.
Está bem, Paulo.
Até que enfim, hem? Arranjou uma folguinha pra mim.
Acontece que eu tenho namorado e…
Aquele que não casa?
É.
Minha cara, uma moça tão inteligente, fica aí perdendo tempo. Tem que pensar na carreira, enfim nós cuidaremos disso, sempre fui um bom amigo, não fui? Mas você também precisa colaborar…
Eu sei.
Está bem, deixa pra lá, sabe o endereço?
Sei.
Então em princípio às cinco e meia, se você chegar primeiro me espera no corredor. Farei o possível pra não atrasar, estou louco pra te ver.
É… até lá, um abraço.
Outro, outro.
Ela desligou o telefone, pensando eufemismos como aquela frase do Júlio César, alea jacta est. Distraía-se pensando em coisas como não estar preparada, quer dizer, a roupa de baixo, precisaria de um banho, antes. Para quê? Fazer das tripas, coração. Fazer a coisa o mais rápido possível (um a mais, um a menos, este ao menos traria mais vantagens, mas isso posteriormente), o que muda um pouco a configuração.
Profissão: secretária em ascensão. Havia lido não sei onde que a secretária era uma instituição chauvinista, donde que sua vida se tornou um deserto humilhante, por isso agora, quando não mentia, racionalizava para os colegas da faculdade, aliás todos intelectuais e artistas, que era só um trampo, um lance provisório, que trabalhar numa instituição sem fins lucrativos era como não ter patrão, etc. etc.
Funcionária – parecia uma cuspida. Mesmo com fome, frio e seis meses de aluguel atrasado, ainda assim teria que se desculpar, suportar aqueles olhares de heróico desprezo. Eles imaginam que todo esse meu papo de arte e cultura não passa de frescura, bile recolhida, que mais? Disritmia verbal, catarse (ora, ora), hobby que cultivo nas horas livres enquanto me empenho na brilhante carreira de superyuppie executiva, que merda.
Fechou os olhos. Lembrou daquele velho nu: terrível! Pálido e baixinho, um composto de flacidez miúda e pelancas giratórias. Atrás dos óculos, olhos azuis de cobiça recorrente e o cheiro de pão amanhecido com cerveja morna. Se ao menos ele fumasse. Não. Pior. Lembrou o cheiro que impregnara o quarto do seu avô após a morte. Definhara de pleura, catarro e fumo de palha. A pele escamara: uma trilha de neve fina e esbranquiçada que começava dentro dos chinelos ao pé da cama, atravessava o corredor, passava sob a porta do banheiro e se extinguia no vaso. Batiam-se os lençóis pela janela e no quintal nevava calidamente: meu avô levado pelo vento.
Distraía-se pensando, sentada nos degraus do prédio na Praça Roosevelt, bunda geladíssima, sobressaltando-se com o zumbido contínuo do elevador, fiuuuuuuuuuuu, números vermelhos, 1, 2, 3, fiummmmmmm, 2, 1, T, ainda não era. Ruídos ocasionais, passos, bater de portas faziam-na levantar-se num pulo e apertar o botão, representando (mal) a confusa estudante enganada de prédio e andar. Servilmente, o elevador surgira por duas vezes, escancarando-se, vazio e cirúrgico. Então apertava o térreo mandando-o lá para baixo, buscar esse velho que não chega, saco. Morrendo de medo do namorado, seu ver-da-dei-ro amor. E se ele descobre? Remorsos? Por aquele que não casa? Engraçado como essa frase banaliza o melodrama mexicano: tudo é relativo, darling. Lembrou: título de um velho filme com Julie Christie, piranha que acabou princesa nas capas da revista Elle. Mas nem piranha, nem darling, nem princesa, nem revista Elle, nem remorsos: só o velho senador chegando, fiuuuuuuuuuu, às seis e meia.
Pequeno, distinto, o velho senador de distintivo na lapela, sutil condecoração pregada no irrepreensível terno cinza grafite de… Versace? Hugo Boss? Valentino? Naturalmente para impressionar a delegação comercial, sua kumpf também, eu sei, eu sei.
Examinava consternado meus sapatos de kraunt (que ironia) pesados, afivelados, de plataforma, última moda? Dos paraplégicos? Examinava meus cabelos desgrenhados, calça jeans & collant de balé…Meu Deus, nem parece uma secretária, minha filha, mas, afinal, qual é sua idade? Muito jovem, realmente, você mudou, há dois anos era mais discreta, deve ser a faculdade, enfiando maluquices na tua cabecinha.
Decepcionado, abria a porta que parecia de cofre ou presídio: sala e quitinete, litro de Martini pela metade na pia, três copos emborcados, geladeira desligada. No banheiro, caixa de papel Yes, lata de talco vazia e um pente. Sofá-cama cor de fundo de lata de lixo, a meia-luz avermelhada, o poster da coelhinha Playboy descolando na altura do rabo, persianas cerradas de pó. O indispensável. Pra lá de ótimo. E eu. E esse velho. Não é nada bobo. Está confuso. Pressente algo errado. Eu. Mas ele disfarça.
Não deve ter-lhe ocorrido pensar em Lolita de Nabocov e muito menos esta espécie de Lolita invertida que se configura no presente momento, comigo no papel de Humbert-Lolito observando o senador de biquíni rebolando na minha frente, enquanto tomo um scotch de chinelo e roupão na chaise-longue do meu jardim mexicano.
Ele pressente uma catástrofe, salvo melhor juízo de Vossa Senhoria. Mas como? Confusão. Ele disfarça, agindo como em circunstâncias ditas normais. Traz os copos lavados e o Martini, falando do trabalho (tira a gravata) das sessões no Senado (desabotoa o paletó) da política no Planalto (as abotoaduras) de Fulano e Sicrano (tira a cinta) inserindo-me generosamente em projetos futuros de grande progresso, afagando meu rosto, deslizando uns dedos furtivos até brecar (ops!) nuns seios (os meus) sem sutiã.
Por detrás do lenço-rápido-perfumado-vermelho-inspeção-conjugal, solta um leve arrotinho: Martini, naturalmente, com o estômago vazio… Dentes pontiagudos mordem meus lábios, mordo os dele de volta, às raias do exagero. Depressa. Ele parte para a ignorância: tesão! (ótimo, agora é rápido) Em pé, na frente dele, devo parecer o monte Everest em chamas. Talvez, um banquinho. Mulherão. Não. Homenzinho. Não. Figurão. Rápido!
Vou despindo o collant, abaixando a meia-calça, tão prática, o mais-que-perfeito-abaixa-pau-mundial, ele ri (de acordo, não levanta mesmo) pelas estatísticas estéticas abaixo o fetichismo das ligas e rendas negras e Vetivér, viva o suor! Ele ri amarelo (essas idéias loucas, né?) e na obrigação (que diabo!) despe-se, dobrando o finíssimo terno Versace-Boss-Valentino com infinitos cuidados enquanto vigio, meio de pileque e divertida, seu traseiro caído, indefeso, empenhado em não amassar a delegação comercial alemã, a sua reputação. De repente, alça-se na ponta dos pés (que diabo!) espremendo-se contra mim, a respiração estertórea, e insiste agora deitado e debatendo-se por entre enormes colunas de basalto (minhas coxas morenas e grossas) avançando em meio a um dédalo de emoções inúteis, forcejando arquejante contra o negramente eriçado altar de sacrifícios.
Bruscamente se levanta, dispara até o banheiro, onde se tranca.
Fumando e descrevendo espirais com a brasa do cigarro, ao longe ouço-o vomitar. Enfim o barco chegara a salvo na praia e, como eu esperava, deserta de salvação. Suas marés há muito haviam recolhido todos os verdes consigo – o que os idiotas chamam de esperança.
Voltou: uma toalha envolvia-lhe o cadáver avermelhado à luz dessa morgue maluca. Tinha sido o Martini, o estômago vazio, a preocupação, a delegação alemã, que horas são? Já? Passou depressa, desculpe, benzinho, você vai compreender, mulher vivida, pois é, essas coisas acontecem nas melhores, não, não precisa, sonrisal, melhorando, obrigado, vá se vestindo, prefere ir só? Então não insisto, muito conhecido, minha mulher é fogo, adeusinho, olha, aquele negócio, o lugar já é seu, sai no Diário Oficial depois de amanhã, tudo acertado, isso, o resto no fim do mês, ora, ora, dá um beijinho no titio, vai, filha, vai.
Na faculdade, ligo para o namorado:
Oi, bem.
Oi.
Estou ligando pra dizer que te amo.
É? Onde você está?
Na faculdade.
Muito bem, estuda direitinho.
Diz que me ama também.
Amo, mas não fica ligando só pra encher o saco, estou assistindo um filme na televisão.
Que filme?
Puta filmão, A noite dos generais, depois te conto, mas não interrompe mais, poxa.
OK, então um beijo.
Tá, tchau.
Aquele que não casa? Suspiro, esmagando o cigarro: na chuva, fiquei entre os pingos. Em suspensão. Remorsos? Bobagem. Essas caras não têm um pingo de sensibilidade.
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