Não, este não é um texto fora da pauta, até porque LA é disparado o lugar de maior visibilidade do planeta. Basta sintonizar a tevê a cabo e conferir: a esmagadora maioria de filmes produzidos por Hollywood passando em qualquer horário, 24 horas por dia, acontece em LA. Sobre essa fantasmagoria globalizada e onipresente, há um magnífico ensaio, Cidade de Quartzo (São Paulo: Boitempo, 2009) do historiador e pesquisador Mike Davis, o mesmo autor de Planeta Favela.
Na sobrecapa, há um mapa de LA e arredores: uma topografia urbana construída no deserto, absurdamente espalhada mas sem núcleo produtivo. Ou como a descreve Morrow Mayo: Los Angeles, isso deve ser entendido: não é uma mera cidade. Ao contrário, ela é, e sempre foi desde 1888, uma mercadoria; algo para ser anunciado e vendido para o povo dos Estados Unidos, como automóveis, cigarros e pasta de dente.
Especificamente, ressalto dois capítulos mais literários, menos estatístico-científicos Luz do Sol ou Noir? e Sucata de Sonhos. Neste último, ao discorrer sobre Fontana/Kaiser/ fundição de aço, o autor demonstra como a engenharia pelo lucro máximo a qualquer custo constrói espaços urbanos vazios de qualquer humanidade, restando apenas corrupção, violência policial, racismo e uma arquitetura a ressaltar a vertigem de pesadelo que se torna realidade.
Voltando: Davis abre o primeiro capítulo com um exemplo extremamente esclarecedor do espírito da cidade: no verão de 1989, a revista Glamour de LA – inventou que o intelectualismo era o último grito da moda (assim como o o corpo perfeito e o espírito New Age publicitariamente haviam sido no passado) donde celebridades comprando óculos espertíssimos, os moradores da cidade notando finalmente que livros eram para vender!
Contudo, o autor observa ironicamente que evocar os intelectuais de Los Angeles significa um convite à incredulidade imediata, senão ao riso.
Los Angeles é habitualmente vista como um solo cultural particularmente estéril (mimetizando seu próprio solo desértico não fosse Mr. William Mulholland, o engenheiro de águas retratado em Chinatown), incapaz de produzir uma intelligentsia nativa. Diferentemente de São Francisco ou New Orleans, a história intelectual de LA parece se resumir a uma prateleira vazia. Entretanto, por razões peculiares, esta cidade essencialmente desenraizada tornou-se capital de uma imensa indústria cultural que, desde 1920, importa montes dos mais talentosos escritores, cineastas, artistas e filósofos. Assim como, desde 1940, a indústria aeroespacial da Califórnia e suas instituições de pesquisa reuniram a maior concentração de cientistas e engenheiros pós-graduados do planeta.
Pode-se objetar que essa tipologia histórica é unilateralmente inclinada em direção aos literatos, cineastas, músicos ou seja, aos fabricantes de espetáculo e que negligencia o papel dos intelectuais práticos planejadores, engenheiros, políticos que de fato constroem cidades. Mas para onde foram esses cientistas que deram forma à economia do pós-guerra impulsionada a foguetes? Na realidade, o destino da ciência em LA exemplifica a inversão de papéis entre a razão prática e ao que os disneyistas chamaram de Imagenharia: lá onde se poderia esperar o máximo da ciência, esta se uniu à ficção barata, à psicologia vulgar; uma irônica e dupla transfiguração de ciência em ficção científica, de ficção científica em religião, a exemplo da Cientologia, um sincretismo obtuso, produto típico de LA. Ah, sim, e o planejamento urbano, aliado à onipresente especulação imobiliária, optou pela síndrome de cenografia sem mais aquela. Mimetismos à Hollywood, como não podia deixar de ser.
O problema é que em Los Angeles o trabalho mental é coletivizado por meio de aparatos gigantescos e diretamente consumido pelo grande capital. Tais relações de capitalismo puro são vistas como destruidoras da identidade dos verdadeiros intelectuais, que continuam a se autodefinir como donos das suas próprias produções. Presos nas redes de Hollywood, talentos são desperdiçados, trivializados e destruídos. Mudar-se para LA é romper a ligação com a realidade nacional (seja lá de onde for), perder a base histórica e vivencial, é permitir a capitulação do distanciamento crítico e submergir no espetáculo e na fraude.
Fundidos numa única imagem estão Fitzgerald reduzido a escriba bêbado (o pobre filha-da-puta, segundo Dottie Parker, para quem Hollywood era um estuário de varizes), Nathanael West (Miss Lonely Harts) correndo para seu próprio apocalipse imaginando que fosse um jantar festivo, Faulkner reescrevendo roteiros de segunda categoria, Brecht se enfurecendo com a mutilação do seu trabalho, etc.
Os europeus (especificamente aqueles que imigraram para os EUA durante a Segunda Guerra) revoltavam-se contra a proletarização da intelligentsia em Hollywood. As queixas dos grupos de Weimar (Adorno, Horkheimer e toda a Escola de Frankfurt, sem contar Marcuse, um frankfurtiano tardio) e de Bloomsbury (Aldous Huxley & Cia) se uniram ao sentimento da colônia local de escritores. Grandes atores, antifascistas brilhantes como Max Reinhart e Peter Lorre batiam ponto como qualquer operário e resignavam-se a pequenos papéis em filmes de terror. Stravinsky teve sua grande chance quando rearranjou a Sagração da Primavera como trilha sonora para a dança das vassouras em Fantasia de Disney, enquanto Schoenberg menos famoso compunha trilhas de suspense para filmes de monstros.
Contudo, se os frankfurtianos exilados surgiram em LA como tragédia, os turistas yuppies pós-modernos de hoje os vêm estritamente como farsa. O que era angústia virou piada.
Duas epígrafes finais:
Vista de Mount Hollywood, Los Angeles parece linda, envolta numa névoa de cores. Na verdade, apesar de todo o sol e brisas oceânicas, é um lugar ruim cheio de velhos, moribundos que nasceram velhos de pais pioneiros cansados, vítimas da América cheia de proliferações loucas e venenosas, de cultos religiosos decadentes, de falsa ciência e de empresas duvidosas que, por seu objetivo de lucro rápido, estão destinadas a desmoronar e arrastar consigo milhões de pessoas: uma selva – Louis Adamic.
LA? Pode-se apodrecer aqui sem sentir. John Rechy in City of Night.
Por momentos neste texto julguei encontrar semelhanças entre São Paulo e Los Angeles, mas logo percebi meu engano. E por três razões:
1) A principal: cinematograficamente, Sampa é praticamente ( e inexplicavelmente) invisível;
2) Geograficamente, ambas nada têm a ver, salvo o desenraizamento decorrente, useiro e vezeiro do Grande Capital;
3) Afinal, ainda não odeio tanto assim minha cidade.
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