Cláudio Versiani, de Nova York*
Aos 31 anos, Guilherme Castro ainda conserva a cara de garoto. Mas ele é um sujeito maduro. Poucos viveram o que ele já viveu. No final de 1999, Guilherme veio para os Estados Unidos trabalhar na corretora Garban Icap, uma das grandes do mercado financeiro. O escritório ficava no World Trade Center em Nova York. A rotina começava às 7h no 25º andar da torre norte, quando os mercados de moedas latino-americanas se preparam para mais um dia de transações financeiras
11 de setembro de 2001, Guilherme cumpriu a mesma rotina de trabalho. O dia estava bonito. Pela manhã o termômetro já dava sinais de que a temperatura iria subir muito naquele quente e úmido verão novaiorquino. Céu azul sobre a ilha de Manhattan, paisagem tranqüila, mais um dia rotineiro na vida de Guilherme.
Por volta das 8h30 ele estava atrás de sua mesa, pronto para negociar com os corretores do outro lado da linha. Reais, pesos e outras instáveis moedas que vão mudando de nome ao longo do tempo. Guilherme conhece bem esses inconstantes mercados da América Latina. É a sua especialidade.
De repente, o prédio balançou muito, como se fosse cair. Ele conta que teve a mesma sensação de quando se está no alto de uma montanha russa, preparando-se para a descida: um frio no estômago, que ameaça sair pela garganta. Foi uma bomba, ele pensou, lembrando-se do ataque terrorista que atingiu o WTC em 1993. Guilherme não pensou duas vezes. Só queria achar a saída de emergência. Ele e todos os outros que estavam na torre norte do WTC naquela fatídica manhã de setembro.
Com a voz tranqüila, ele conta como conseguiu descer os 25 andares do prédio. Na verdade, eram menos, porque o teto do lobby ia até o 4º andar. Guilherme é um dos sobreviventes da tragédia. Escapar de acidentes na terra do Tio Sam parece ser um dom do brasileiro. Em 1991, no estado da Flórida, ele estava dentro de um trem que se chocou com um caminhão tanque. Uma grande explosão, cinco mortos e muitos feridos. Saiu ileso. Mas isso não foi nada, se comparado com a experiência de viver por dentro o pior atentado terrorista da história da humanidade: 2749 mortos.
PublicidadeHoje ele mora perto do lugar onde se erguiam as torres gêmeas, dois dos maiores prédios do mundo até então. De casa, quando está no computador, Guilherme vê pela janela de seu escritório o buraco do Marco Zero. É só uma lembrança, um buraco no meio do nada. Guilherme não quer saber de trauma. Visitou o buraco 20 dias depois do atentado. Ainda tinha fumaça por lá. “Foi horrível, mas dá pra continuar vivendo; outros morreram ou viram coisas que não se pode esquecer, eu estou vivo”, diz Guilherme, que tem todos os motivos do mundo pra celebrar a vida.
No último dia 5 de agosto nasceu Elisa, quase quatro anos depois que o pai desceu os 25 andares do WTC norte e vagou perdido pela cidade, com os sapatos molhados a fazer bolhas em seus pés.
A aflição maior naquele fatídico 11 de setembro ocorreu quando ele tentou falar com a esposa Paula, que estudava em Boston naquela época, e com a mãe, no Brasil. Com Paula ele falou cedo, mas com dona Cecília, que estava em pânico temendo o pior, só conseguiu no começo da tarde. “Eu só queria dizer que estava vivo”, lembra Guilherme.
Leia, a seguir, o relato feito a este jornalista por Guilherme Castro, o sobrevivente:
“O 11 de setembro de 2001 foi um dia quente. Estava calor, era um dia bonito de céu azul. Eu estava de calça jeans, camisa pólo, com uma camiseta branca por baixo, e sapato sem meia. Eu lembro disso porque quando estava descendo as escadas, tirei a camisa e pus na cara e fiquei com a camiseta. Tinha muita fumaça. Trabalhando normal. Às 8h30 os mercados já estão abertos e os negócios já estão sendo feitos.
Aí, do nada – quer dizer, eu não ouvi o avião se aproximando, pra mim foi do nada – , estava sentado de frente pra janela que dava para a praça interna, que vivia cheia de turistas, a única coisa de que eu me lembro é que o prédio pareceu ter levantado. Começou a tremer, a primeira sensação foi de que o prédio inclinou para um lado. A impressão era de que ele iria cair naquela hora. O cara que estava na minha frente caiu na parede, na janela, ficou pregado com o impacto, de tanto que inclinou. Tudo balançando, as coisas caindo de cima das mesas. Começou a balançar. Depois, um barulho enorme. Pensei: é bomba! Saí correndo, deixei tudo meu lá, mochila, celular… Por sorte, a carteira estava no meu bolso.
Corri em direção às escadas, apareceu uma mulher e me mandou para outro lado. Vi cadeiras, papel, coisas de escritório caindo do prédio e muitos detritos. Desci correndo os 25 andares. O outro avião ainda não tinha batido na outra torre (o que ocorreu 18 minutos depois), mas ficamos presos no meio da escada. Pelo volume de gente (no meu andar trabalhavam umas 400 pessoas), acho que era no 13º andar. Ninguém estava correndo, todo mundo estava andando rápido. Tinha muita fumaça, não era fumaça de fogo, era pó. Tinha muita água no chão. Abri uma porta e dei de cara com tudo destruído, teto caído. Vi umas pessoas e perguntei se havia outra saída. ‘Não, volta que não tem outra escada’, responderam-me.
A porta lá embaixo, na saída para o térreo, estava fechada. Mas os bombeiros chegaram rápido, abriram a porta e começaram a passar por nós, carregados de equipamentos. Chegamos ao lobby e não reconheci o lugar. Pensei que estivesse na garagem. Não dava pra entender onde eu estava. Tudo havia explodido, as portas dos elevadores estavam estouradas, o chão, coberto de detritos. Já havia policiais coordenando a retirada do pessoal. Eles gritavam: ‘Sai, sai. Põe a mão na cabeça e sai correndo’. Foi aí que percebi que estava no lobby.
Passei por bombeiros assistindo umas pessoas queimadas, foi horrível. Corri. Lá fora fiquei debaixo de uma passarela me protegendo dos detritos que continuavam caindo. O prédio estava queimando. Eu estava tentando encontrar os dois amigos que haviam descido comigo. De repente, um barulho. Olhei pra cima e vi uma bola de fogo. Era a segunda torre explodindo, mas naquela hora eu não sabia que era avião – acho que ninguém sabia. Saí correndo, todo mundo saiu correndo. Fui em direção ao sul, pânico de verdade, gente passando por cima de gente, as ruas estavam tomadas. Tinha um monte de gente na rua, curiosos olhando o prédio pegar fogo. Todo mundo saiu correndo que nem louco
Cheguei ao Battery Park (extremo sul de Manhattan). Também fiquei olhando para o prédio, sem querer acreditar no que estava vendo. Encontrei os amigos, todo mundo estava atordoado. Um deles me falou: ‘Os aviões estão atacando’. ‘Que aviões? Você viu o avião batendo?’, perguntei. ‘Vi. É um avião Delta, é um avião United.’, respondeu. Eu estava olhando para a cara dele, quando ele disse: ‘Meu, eu não acredito! Nossa! As pessoas estão pulando! Tinha um monte de gente pulando, cara.’ Eu pensei: ‘Não quero ver ninguém pulando, estou indo embora, estou indo pra casa. Estou fora, não quero ficar aqui, vai que esse prédio cai’. O fogo era enorme.
Subi em direção ao norte, molhado, suado e desorientado, e com os sapatos encharcados, os pés cheios de bolhas. Cheguei ao centro de Chinatown. Lá a vida estava normal. Era como se nada tivesse acontecido. Os chineses trabalhando nos seus mercados, dali não dava pra ver as torres. Estava na Canal Street (Chinatown), chegou um cara e disse: ‘A torre caiu, a torre caiu’. Corri até a Broadway e vi a fumaça, olhei e só vi uma torre. Que absurdo, não deu pra saber qual das torres havia caído. Falei comigo mesmo: ‘Ainda bem que saí, se estivesse lá embaixo, poderia morrer do mesmo jeito’.
Mas, ao mesmo tempo, havia umas 50 pessoas que eu conhecia que estavam lá embaixo, olhando os prédios. Não tinha idéia de quem sobreviveu ou não. Estava aliviado por estar vivo, mas muito aflito. Fui para casa. Entrei num táxi e dividi com mais umas 10 pessoas, sei lá. O rádio do carro anunciou que mais um avião havia atingido o Pentágono e 11 estavam sumidos. ‘Meu, quero sair dessa cidade agora.’ Os outros passageiros também trabalhavam no WTC, perguntei: ‘Em que andar vocês estavam? A gente estava no andar 99 da torre sul. E, graças a Deus, quando o avião bateu na torre de vocês, a gente saiu, todo mundo, o andar inteiro, e quando a segurança mandou voltar, ninguém obedeceu. Eram três caras que estavam lá em cima, loucura’, contaram.
Nisso, eu ainda estava no táxi, caiu a torre norte. Quando cheguei em casa, tremia, o pânico já estava instalado em toda a cidade, no meu prédio inclusive. A cidade estava um caos. A única coisa que funcionava era a internet. Mandei e-mails pra todo mundo no Brasil, avisando que estava bem. Com a Paula, minha mulher, que estava em Boston, já tinha falado de um orelhão em Chinatown. Mas eu estava mal, não conseguia fazer nada, não queria ver televisão, escutar rádio, nada. Saí pra dar uma volta. Quinta Avenida vazia, deserta.
Queria ir pra Boston, tentei alugar carro, não tinha. As pontes fechadas, os aeroportos também, o trem não funcionava. Naquele momento passaram dois caças bem baixo, veio o pânico de novo. Espaço aéreo fechado, os aviões militares estavam protegendo a cidade. A galera vendo aquilo, as pessoas corriam, ninguém sabia o que estava acontecendo, ninguém sabia de nada.
Tomei uns negócios e só acordei no dia seguinte. Fui para a estação de trem e segui para Boston. Não sabia de nada, se tinha emprego e o que ia fazer da vida. Vinte dias depois voltei ao local da tragédia para ver o buraco. Ainda tinha fumaça e resto de prédio. Fui lá pra romper com o trauma.
Durante dois meses não consegui dormir legal, qualquer barulho me acordava. Quando ia a cinemas e restaurantes queria saber onde ficavam as saídas de emergência, curiosidade que nunca havia tido. Barulho de avião, tinha de ir à janela ver o avião. Isso demorou uns seis meses. No metrô não dava para entrar. Hoje me sinto seguro na cidade. Quando vejo imagens do atentado, acho que o que passei não foi tão ruim. Não tive que atravessar nenhum incêndio, não vi as pessoas pulando, não vi muitas pessoas feridas, não vi ninguém morto. O que eu passei foi horrível, mas dá pra continuar vivendo.”
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