Férias sempre me inclinam à ficção, algo muito mais difícil ou completamente impossível de produzir do que reflexões sobre geopolítica, cultura, comportamento, literatura, sem contar efemérides & obituários – afinal, eu deveria falar de Michael Jackson e Farrah Fawcett, se eu não achasse um verdadeiro pé no saco. Porque se não toca aquele sino interno, se não sinto repercutir o carrilhão de cordas da memória, sai um texto escrito sem emoção, um texto constituído antes de enxerto do que de raiz, um texto burocratizado, e o que é escrito sem esforço é lido sem prazer.
De forma que engendrei aí um fragmento de auto-retrato (até porque depois dos 50 a gente já começa a fazer balanços de vida, a escrever para a morte) cujo ritmo narrativo e a linguagem ressoam tão harmoniosamente que o conteúdo em si deixa de ter importância, e isto é ficção.
Sou paulistana de quatro gerações. Meu tataravô, Norbert Denser, foi um berlinense que, em torno de 1850 e por razões desconhecidas, deixou a Alemanha pelo porto de Dantzig, embarcando sozinho num cargueiro dinamarquês com alguns livros, a caixa de ferramentas e uma capa de oleado. Um mês depois aportaria em Santos e num estado de calamitoso orgulho subiria a serra pela estrada de ferro inglesa rumo a condições climáticas mais dignas dum homem trabalhar e constituir família, pois deve ter pensado, intuído: case-se com uma mulher da terra, a terra prometida é o corpo da mulher amada.
Por isso em 24 de agosto de 1865, de acordo com os registros do Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo, data em que assentou sua banca de ferreiro na Rua de Santo Amaro, possivelmente já estivesse casado com uma das Borba, filha ou neta do bandeirante Borba Gato, aquele da Estátua.
Meu avô paterno – que não conheci – Antonio de Borba Denser casou-se com Carolina Miceli, donde papai, falecido em 1997, assinar Durval Miceli Denser. Contudo eu e minha irmã, Maria Teresa, optamos por um único sobrenome: Denser. Então retornamos ao velho Norbert lá do começo.
Bom, isso é história, agora, a ficção.
Sou escritora e a cidade é meu campo de ação, minha via crucis, meu altar de sacrifícios, meu refúgio, minha entidade mais secreta. E também a mais pública. Desde tempos imemoriais, a cidade é um símbolo feminino, é mulher, então compreende-se porque as estátuas de deusas-mãe, como a Diana de Éfeso, ostentam coroas em forma de muro. Assim, minha personagem Diana Marini é uma representação de São Paulo. Na novela Welcome to Diana ela dá boas vindas ao leitor (em inglês, posto ser cosmopolita), seu lema é seduzi-lo para melhor devorá-lo!
Aos 24 anos publiquei meus primeiros contos. Era gás puro e duma coragem suicida. As pessoas me olhavam com uma espécie de inescrutável repugnância, não conseguiam me situar. Escrevia duma forma um bocado descarada e, ao mesmo tempo, aquilo era literatura. Nem Clarice, nem Cassandra – o que não deixa de ser um escândalo. Mas eu não ia ficar descrevendo baratas metafísicas, por Deus que não, tampouco defender um moralismo pelo avesso, nem um feminismo de fachada.
Trinta anos e dez livros depois (sem contar as antologias e traduções no exterior, do quê eu acho um saco ficar dando release) continuo odiando qualquer tipo de extremismo e me permitindo qualquer exagero. As pessoas continuam me olhando com uma espécie de inescrutável repugnância.
Afinal não sou rica, nem famosa e nem pilantra como Jacqueline Onassis. Tampouco grande dama como dona Raquel de Queiroz, de fardão e tudo. Apenas uma escritora em processo que já se expôs o suficiente e por várias Grandes Damas e Variadíssimas Grandes Vaconas: aquela que lava todas as calcinhas do mundo.
Deixe um comentário