Informam os jornais que a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, foi consultada e concordou em dar um viés mais de esquerda ao programa de governo saído do Encontro Nacional do PT neste fim de semana em Brasília. O noticiário informa também, porém, que, para Dilma e para toda a cúpula da campanha, esse programa mais esquerdista agora foi feito para adoçar a boca das tendências petistas mais radicais. Uma forma de aplacar descontentamentos. Que o que vai valer mesmo é a formulação que será feita mais adiante, na convenção partidária que oficializará a candidatura, negociados os termos do programa com os aliados políticos na campanha. A partir daí, podemos, então concluir o seguinte: tem um bocado de caô nessa história que se começa a construir de que a eleição de outubro será um embate entre as forças progressistas e preocupadas com o social agrupadas em torno de Dilma, e as forças do atraso, retrógradas e conservadoras, que vão ficar com José Serra. Recomenda-se a quem quiser ver filme de mocinho e bandido que vá ao vídeo-clube e alugue uma fita daquelas bem antigas. A briga em outubro não será assim tão maniqueísta.
Em primeiro lugar, é preciso que se diga que a centro-esquerda brasileira ganhou a parada terminada a ditadura militar. O pacto que derrotou o regime dos generais deslocou o eixo para uma predominância de políticos de formação de esquerda amparados por forças mais conservadoras que lhe dão sustentação. Essa era a premissa na formação da Aliança Democrática com Tancredo, desarrumou-se com a aventura Fernando Collor, reorganizou-se com Itamar Franco, assentou-se de vez no governo Fernando Henrique Cardoso e aprofundou-se após a eleição de Lula. De modo que todos os candidatos a presidente em outubro têm origem de esquerda. A exceção é Ciro Gomes, que tem origem conservadora, mas caminhou rumo à mesma sustentação de centro-esquerda dos demais. Quem quer que vença as eleições, terá de trabalhar necessariamente dentro dessa lógica. O que vai mudar serão nuances, dentro das convicções e características de cada um.
Assim, no perfil das alianças, se o PSDB fica amarrado pelo conservadorismo do DEM, o PT ficará preso pela aliança com o PMDB. Pode-se dizer que o DEM, do ponto de vista da concretude ideológica, é mais de direita que o PMDB. Por outro lado, é um partido menor e menos importante. Numa eventual vitória de Serra, dado o seu tamanho atual e as crises particulares que enfrenta, não conseguirá ter a mesma inserção que teve, por exemplo, no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso. O PMDB, pelo lado da aliança de Dilma, é bem menos orgânico ideologicamente. Mas troca isso por um pragmatismo e um patrimonialismo extremados. É um partido com fome de poder, que se apropria mesmo dos espaços que ocupa (o que, no mau sentido, muitas vezes tem significado denúncias e escândalos). E que, imenso, terá grande capacidade de influência no governo Dilma. Lula, que é um ícone popular que Dilma não será, viu-se obrigado a ceder às vontades peemedebistas. Dilma não conseguirá fazer diferente.
No caso dos perfis particulares, tanto Dilma quanto Serra têm na sua origem a militância nos grupos clandestinos de esquerda que combatiam a ditadura militar. Serra no movimento estudantil, na Ação Popular (AP), tendência ligada à igreja progressista. Dilma mais radical, na luta armada, no Comando de Libertação Nacional (Colina) e na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR Palmares). Dilma foi presa e torturada. Serra amargou exílio. Não vale muito a pena um campeonato de esquerdismo nesse sentido entre os dois.
Na estratégia eleitoral imaginada por Lula, a ideia é que a disputa em outubro seja entre o que ele realizou e o que fez antes Fernando Henrique. É um debate que não vale muito. Em primeiro lugar, os candidatos em outubro não serão nem Lula nem Fernando Henrique. E há diferenças de circunstâncias que precisam ser levadas em conta. Durante todo o governo Fernando Henrique, Serra foi um crítico da condução econômica mais ortodoxa e conservadora. Incomodou tanto que foi deslocado do Ministério do Planejamento para a tentativa de se eleger prefeito de São Paulo em 1996, eleição que perdeu para Celso Pitta. Quando voltou ao governo, já não foi de volta para a área econômica, mas no Ministério da Saúde, onde teria um monte de problemas específicos para resolver e não poderia dar muito pitaco na economia.
Ou seja: não é improvável que Serra, caso tivesse vencido Lula em 2002, tivesse imprimido uma condução econômica parecida, porque o viés menos conservador e mais desenvolvimentista foi também o que ele sempre pregou.
Quanto ao PT, é verdade também que os ventos atuais da economia permitem ao partido fazer agora um tipo de discurso que não podia fazer em 2002, no fim do governo Fernando Henrique. Naquele momento, o país estava em crise, com uma dívida pública imensa. Embora a famosa “Carta ao Povo Brasileiro” de Lula seja um documento bem crítico ao governo Fernando Henrique, e que já sinaliza o conjunto crescimento com estabilidade que o governo do PT imprimiria, ela diz, com todas as letras: “É preciso compreender que a margem de manobra da política econômica no curto prazo é pequena”. Ali, naquele momento, não dava para inventar muito. E Antonio Palocci, como ministro da Fazenda, foi, como dizia o “Analista de Bagé” de Luiz Fernando Veríssimo, “mais ortodoxo que embalagem de Maisena”.
Somente a partir desse ritmo conservador no início que o Brasil de Lula conseguiu arrumar as suas contas, zerar a dívida, refazer suas reservas e partir para o patamar atual, que permite falar num programa de crescimento econômico. O que parece verdadeiro é que nem Serra nem Dilma sinalizaram ainda para uma compreensão completa dos desafios modernos do crescimento sem agredir o ambiente, que não é necessariamente uma discussão nem de esquerda nem de direita (a China comunista dá praticamente valor nenhum a essa questão).
Se o eleitor quiser de fato votar de forma consciente em outubro, é bom que evite embarcar no embate emocional e marqueteiro que se tenta imprimir. Por uma questão prática e pela própria natureza dos regimes democráticos (que tendem para o centro e não permitem grandes revoluções, mas, por outro lado, são mais estáveis, permitem uma evolução de longo prazo e evitam os desastres dos projetos arrogantes e voluntaristas), nenhum candidato (entre os que terão chances reais) será assim tão mais de esquerda que os demais. Em vez do discurso fácil e vazio geral, será necessário descer ao detalhamento, às propostas concretas, para ver, de fato, quem estará mais preparado para dirigir a nave Brasil nos próximos anos.
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