Paulo Kramer*
Trabalhos científicos recentes, a exemplo de “Impacto virtuoso do Pólo Industrial de Manaus sobre a proteção da floresta amazônica: discurso ou fato?”, dos professores da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e investigadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Alexandre Rivas, José A. Mota e José Alberto da Costa Machado, revelam por que o estado do Amazonas pode ser considerado um gigantesco oásis, com 98% da sua cobertura vegetal original ainda intactos, dentro da Amazônia Legal.
Na região, que corresponde a mais da metade do território brasileiro, com 25 milhões de habitantes espalhados por nove estados (Acre, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Amapá, Mato Grosso, Tocantins e Maranhão), a motosserra e a queimada não param de consumir a floresta, conforme documentam, mês a mês, as fotos por satélite divulgadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Até agora, o Amazonas foi poupado desse destino graças ao Pólo Industrial da Zona Franca de Manaus (PIM/ZFM), criada em 1967, em pleno regime militar. Hoje, o pólo concentra cerca de 500 empresas, que, no ano passado, faturaram o equivalente a 26 bilhões de dólares, geraram mais de 100 mil empregos diretos e recolheram tributos da ordem de 12,5 bilhões de reais, o que faz da capital do Amazonas a quarta mais rica do Brasil, muito embora de 600 mil a 800 mil do seu 1,8 milhão de habitantes (60% da população do estado) ainda não tenham acesso a água e esgoto tratados.
Sem a alternativa proporcionada por essas indústrias (eletroeletrônicos, informática, motocicletas, plásticos etc.), afirmam o professor Rivas e seus co-autores, a população fatalmente buscaria a sobrevivência na derrubada da floresta, copiando a triste sorte do vizinho Pará, comparativamente muito mais devastado pela derrubada de madeiras nobres, prólogo à expansão da pecuária extensiva de corte.
Mas a mesma prosperidade gerada pelo PIM e que tem sido responsável pelo desmatamento quase zero do Amazonas já ameaça esse equilíbrio virtuoso. Manaus e sua periferia recortada por inúmeros igarapés experimentam um boom imobiliário alimentado por materiais de construção (tijolos e telhas) provenientes dos municípios vizinhos de Iranduba e Manacapuru, a pouco mais de 20 quilômetros a sudoeste da capital, distância que leva mais de hora e meia para ser coberta por balsas que atravessam o rio Negro, enquanto não fica pronta a ponte que só recentemente começou a ser construída.
Em Iranduba, dezenas de olarias de variado porte ocupam, diretamente, 2 mil de seus cerca de 40 mil habitantes e operam, quase todas, com fornos a lenha. A extração de madeira no seu entorno rural é tão intensa que o índice de desmatamento local chega a 15%, em confronto com os 2% do conjunto do estado.
O conflito entre o curto e o longo prazos
PublicidadeComo a quase totalidade dessa extração é ilegal, a Polícia Federal e o Ibama desencadearam, no mês passado, a Operação Fogo Limpo, que constatou o consumo de madeira não autorizada em seis de sete empresas vistoriadas. Com a fiscalização, as olarias pararam ou reduziram drasticamente sua produção, o que já levou o Sindicato da Construção Civil do Amazonas (Sinduscon/AM) a anunciar para breve a paralisação das atividades do setor.
Essa crise local ilustra as dificuldades práticas que, em geral, bloqueiam o caminho de políticas públicas destinadas a equilibrar crescimento econômico, desenvolvimento social e sustentabilidade ambiental, embaralhando urgências de curto prazo e perspectivas de longo prazo.
No último dia 1º, presenciei um ensaio de articulação política e institucional patrocinado pela Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor, Fiscalização e Controle do Senado (CMA), com a finalidade de encontrar uma saída para o impasse.
A requerimento do senador Jefferson Praia (PDT-AM), sucessor e ex-suplente de seu xará Jefferson Peres, falecido em maio deste ano, a CMA promoveu diligência pública em Iranduba convidando mais de 40 autoridades e organizações governamentais e não-governamentais para um dia de debates no plenário da Câmara Municipal.
Tanto na abertura quanto no encerramento dos trabalhos, Praia salientou o desafio de compatibilizar o curto, o médio e o longo prazos nesta e nas demais questões amazônicas: “De um lado, estão as leis e os regulamentos ambientais, que proíbem ou, no mínimo, restringem rigorosamente o desmatamento e precisam ser cumpridos; caso contrário, assistiremos ao prolongamento de uma situação inaceitável de violação do estado de direito e destruição do patrimônio natural das próximas gerações. Mas, de outro lado, estão seres humanos, famílias de sitiantes pobres com pouca ou nenhuma qualificação educacional, que vivem da roça de subsistência e do abate de árvores para a lenha e, também, famílias de operários das olarias que perderão seus empregos se parar a produção de tijolos e telhas”.
O vereador Frank Lopes Pereira, do PRTB, presidente da Associação das Indústrias de Cerâmica e Olaria do Amazonas (Aceram), explicou que a entidade procura promover, entre seus associados, a utilização de serragem e de pallets (embalagens de madeira dos insumos e equipamentos importados pelas empresas do PIM) como alternativa energética à lenha para os seus fornos. O problema, segundo o líder ceramista, é que a explosão recente da demanda vem tornando essa opção cada vez mais rara e cara. “Há quatro anos, nossas olarias recolhiam esses descartes nas indústrias do pólo e ainda recebiam 200 reais por caminhão carregado. Hoje, temos que pagar 100 reais por tonelada e ainda negociar com o cartel das empresas de reciclagem que surgiram para comercializar os pallets”.
Frank Lopes acrescentou que o desenvolvimento de oportunidades para o funcionamento das olarias dentro da lei e a melhoria das condições de vida e trabalho dos sitiantes e cortadores de lenha depende de uma sintonia mais fina entre os setores públicos e privado: o manejo racional das florestas e o cultivo consorciado de árvores para lenha (como a acácia), gêneros de subsistência, árvores frutíferas e madeiras nobres, devidamente certificadas, podem dar certo, desde que se definam condições de financiamento e assistência técnica agroflorestal para o plantio das mudas, cultivo, extração e replantio.
(Ao meu lado, na platéia, o veterinário Rui Gomes, subsecretário municipal de Desenvolvimento Econômico Local de Manaus, cochichou que a solução definitiva chegará daqui a dois anos, com o oleoduto que a Petrobras está construindo para levar o gás natural de Urucu, na região central do Amazonas, até o PIM. Mas, como lembrou outro participante do encontro, o empresário Francisco Belfort, da Associação Nacional da Indústria Cerâmica [Anicer], a conversão das olarias a essa nova fonte energética acarretará custos que necessitarão de subsídio estatal.)
O empresário-vereador aproveitou para divulgar que está negociando a compra de 150 hectares de mata, que serão mantidos intactos, com vista à negociação de créditos de carbono, um regime internacional que se desenvolve rapidamente com base nos chamados mecanismos de desenvolvimento limpo (MDL) para permitir às indústrias poluidoras do mundo desenvolvido que compensem suas emissões de gases de efeito-estufa mediante o reflorestamento ou a manutenção da cobertura original de áreas de países em desenvolvimento capazes de reter (o termo técnico é seqüestrar) quantidade equivalente de carbono, contribuindo, assim, para um balanço mais positivo na luta contra o aquecimento global.
Já o representante do Ibama, Adílson Cordeiro, reclamou que, há mais de 20 anos, no início de sua carreira profissional no hoje extinto Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), Iranduba já era o município proporcionalmente mais desmatado do Brasil. Em seguida, propôs a aceleração de estudos de viabilidade técnica e econômica para a introdução da cultura do capim-elefante, conhecido por seu grande potencial calórico, e cujo emprego como combustível já foi testado pela Embrapa no estado do Rio com bons resultados.
A secretária estadual de Desenvolvimento Sustentável, Nádia Ferreira, na coordenação de uma força-tarefa integrada pelo Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas), o Iteam (Instituto de Terras do Amazonas) e outros órgãos públicos, historiou o cronograma das reuniões envolvendo empresários, sindicalistas, líderes rurais, associações de ‘lenheiros’, autoridades municipais e estaduais, na esteira do trauma provocado pela Operação Fogo Limpo. Ela também listou as providências a serem tomadas até o final deste ano para possibilitar a celebração de um Termo de Ajuste de Conduta Ambiental entre esses atores coletivos e o Ministério Público, em Iranduba e Manacapuru: uma pauta que contém missões espinhosas jamais enfrentadas, a começar pela regularização fundiária dos sítios onde a lenha é extraída.
Cestas básicas e Bolsa-Floresta
No curtíssimo prazo, aquele horizonte imediato em que lenhadores e operários precisam trabalhar para comer – e dar de comer às suas famílias –, prefeito de Iranduba, Raymundo Nonato Lopes (PMDB), que acaba de ser reeleito para aquele que será o seu terceiro mandato no cargo e já foi deputado estadual, anunciou a distribuição emergencial de cestas básicas. Ao mesmo tempo, a secretária Nádia Ferreira determinou o início imediato do cadastramento das famílias de agricultores que vivem na Área de Proteção Ambiental do Rio Negro para os benefícios do programa Bolsa-Floresta (50 reais mensais), iniciativa do governo Eduardo Braga destinada a conter o desmatamento nas unidades de conservação do estado.
Conforme resumiu o engenheiro-químico e consultor legislativo do Senado Ivan Dutra Faria, veterano mediador de conflitos ambientais desde os anos 80, quando trabalhava na Eletronorte, a audiência pública de Iranduba, ao franquear a palavra a operários, sitiantes, lenhadores, industriais, políticos burocratas e técnicos, “esboça o modelo a ser aperfeiçoado para o encaminhamento dessa e de muitas outras questões de política pública na Amazônia brasileira”: transparência na explicitação dos interesses legítimos em choque, responsabilidade compartilhada pela negociação de soluções e conciliação entre as exigências do curto e do longo prazos, em um contexto de liberdade garantido pela obediência de todos à lei.
* Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e analista da Kramer & Ornelas – Consultoria.
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