Dia 2 de dezembro é o Dia Nacional do Samba, que representa a cultura brasileira e surge com a comunidade preta.
A presença do povo preto sempre foi a principal preocupação da polícia na época da Coroa portuguesa, continuou sendo durante o Império e se manteve na República Velha. Hoje em dia, com o inchaço populacional da cidade é a grande preocupação com a segregação geográfica das favelas e com as comunidades periféricas.
As comunidades negras e subúrbios são berço das Escolas de Samba, que se relacionam com os cultos afro-brasileiros, com seus rituais e sua religiosidade. Esta influência de sacralização vai se refletir não apenas no ritmo, mas também na coreografia e na indicação das cores das agremiações de samba, que surgem a partir dos anos 20 e 30 do século passado, no Rio de Janeiro.
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Surgido no meio dos pretos, ex-escravos, o samba, entendido como a dança da reza, sofreu o mesmo preconceito racial que seus criadores. A imprensa dessa época inicial tem inúmeros registros de ações da polícia contra os sambistas. Um desses foi João da Baiana, autor de clássicos e considerado por muitos como o introdutor do pandeiro nas rodas. Em depoimento ao Museu da Imagem do Som do Rio de Janeiro, João da Baiana relembrará o quanto foi assíduo frequentador da cadeia. “Fui preso várias vezes por tocar pandeiro”.
Mesmo marginalizados e sistematicamente perseguidos, os sambistas do morro começavam a aparecer para o resto da cidade. No início dos anos 30, por conta da Rádio Nacional, sob a direção de Almirante, o samba carioca será transmitido para todo o país. Muitos cantores importantes já os procuravam para comprar seus sambas e os jornais passaram a se interessavam por suas histórias. Até que um dos periódicos, o “Mundo Sportivo”, resolveu fazer um campeonato entre as escolas de samba, na Praça Onze. E assim, em 1932, acontecia o primeiro desfile da história.
Uma das figuras que mais teve influência nessa história não era sambista nem gostava de batuque. O delegado Dulcídio Gonçalves em 1935, não quis renovar a licença da Vai Como Pode, por considerar o nome vulgar. Ele perguntou: “De onde vocês são?“. Paulo da Portela respondeu: “Da Estrada do Portela“. “Então a partir de hoje vocês são o Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela“, retrucou.
Naquela época, dois nomes se destacavam à frente das escolas de samba: Cartola e Paulo da Portela. Eles podem ser considerados “os fundadores” do que hoje é o maior espetáculo da Terra. Paulo foi um dos maiores líderes que o Rio de Janeiro já teve. Sua luta pelo reconhecimento do sambista foi fundamental para a aceitação das escolas. Paulo criou o mote: sambista para ser sambista tem que andar de pés e pescoços ocupados, criando assim o uso de terno, gravata, sapatos e chapéu, para evitar a discriminação pela polícia, sem ferir “os bons costumes”, além de escrever para os jornais e ganhar a simpatia da imprensa.
Nas primeiras décadas do século passado, o simples ato de caminhar pelas ruas carregando um instrumento poderia levar a pessoa para a cadeia, desde que, fosse negro e se vestisse como sambista. Como não havia tipificações penais a detenção pela polícia geralmente atingia grupos bem determinados, quase sempre negros, sambistas, praticantes de capoeira e adeptos das religiões de matriz africana.
A vingança dos sambistas contra essa repressão era denunciar em suas músicas a violência que sofriam. Há muitos exemplos. Um deles é a composição “Delegado Chico Palha”, de Tio Hélio e Nilton Campolino. Regravada recentemente por Zeca Pagodinho, o samba foi feito em 1938. Era um tempo em que a polícia de Getúlio Vargas fazia perseguição pesada. A letra é bastante clara:
“Delegado Chico Palha/
Sem alma, sem coração
/Não quer samba nem curimba/
Na sua jurisdição/
Ele não prendia/
Só batia”.
A historiografia da música popular consagra o “Pelo Telefone” (1916 de autoria de Ernesto dos Santos, o Donga (1890-1974) e Mauro de Almeida (1882-1956) como o primeiro registro fonográfico de um samba. Sua motivação central é, igualmente, uma crítica bem-humorada ao chefe da polícia carioca que combate os jogos de azar na cidade. Martinho da Vila o reeditou em seu LP Origens pela RCA em 1973:
“O Chefe da polícia
Pelo telefone manda me avisar
Que na carioca tem uma roleta para se jogar”
O preconceito contra o samba não se materializou somente na repressão policial das primeiras décadas. No fim dos anos 70, as emissoras de rádio e TV praticamente só tinham espaço para músicas americanas. A batucada era considerada brega, ultrapassada. O compositor Nelson Sargento conta que, em 1979, criou a letra que diz ‘Samba/ Agoniza, mas não morre’, por conta da perseguição policial que sofria. A cantora Teresa Cristina, da nova geração de sambistas e intérpretes, não acha que esse tipo de preconceito esteja superado.
O jornalista Rubens dos Santos, o Confete, fala sobre o samba em depoimento para o Dossiê de Tombamento do Samba como Patrimônio Cultural Imaterial do Rio de Janeiro:
“O samba é um fenômeno que tem uma explicação na energia que vem das casas de Omolokô. Da tradição religiosa de base africana, que juntou o culto às almas, da gira de Preto Velho e Caboclo e, vai até o culto aos orixás. Foi lá que nasceu a Portela, da energia de Seu Napoleão Nascimento, que era o pai do Natal. No Estácio, foi da energia de Tancredo da Silva, grande pai de santo de Omolokô. Na Mangueira, Dona Maria da Fé estimulada por Elói Antero Dias para que criassem uma escola de samba. Antes de fundar o Império Serrano Sr. Elói fundou o Deixa Malhar, no Baixo Tijuca onde é hoje a rua Almirante Candido Brasil.”
Neste momento de pandemia as Escolas de Samba sofrem o desafio do isolamento social, já que são um ativo social, cultural de corpos felizes, que se aquilombam para representar o seu território e sua fé. Sem apoio governamental elas se voltam para suas bases, com cestas básicas, máscaras e poesia. Os enredos propostos para 2021 reverenciam os Orixás e o processo civilizatório africano, indicando que estão se vendo como instituições culturais e de cunho geográfico, plenas de riquezas afetivas, sociais, de encontros e saberes.
A Mocidade Independente de Padre Miguel reverencia Oxóssi, o caçador. Portela representa o Baobá, que liga o espaço material, a terra, com o mundo transcendente, pois precisa do ar, da água e do sol para nutrir suas raízes. Grande Rio apresenta Exu, orixá da comunicação e do movimento. União da Ilha fala de Pierre Fatumbi Verger, figura fundamental para se pensar as questões afro-brasileiras até hoje. São Clemente traz Ubuntu, a filosofia banta de Angola. Salgueiro mostra o enredo Resistência, que trata da luta da comunidade preta por sua tradição e identidade, negociando na fé, nas artes, na comunidade, e sem perder a alma.
É importante preservar as Escolas de Samba, pois são instituições grandiosas que dialogam para a construção do país e para a constituição do povo, além de os projetarem no mundo, incrementando a educação e o turismo, aquecendo o mercado de trabalho e a economia. Conclusão, o delegado Chico Palha não tinha qualquer razão.
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