Bezerra Couto
Vamos direto ao ponto. Só faz sentido uma entrevista com uma autoridade cujo governo mergulhou na lama se os jornalistas são capazes de questioná-la e mostrar suas contradições. E o que aconteceu no Roda Viva? Lula botou os jornalistas na roda, e não o contrário. Meteu pelo menos 16 gols, sofrendo no máximo 5 revezes. Segue a contabilidade do DataBezerra.
Gol de Lula – O líder da companheirocracia brasileira começou a ganhar o jogo antes do início da partida. No cenário em que o programa é feito normalmente, os entrevistadores ficam em bancadas superiores, criando um clima de tensão, quase de interrogatório. Na gravação feita no Palácio do Planalto, Lula e os jornalistas permaneceram no mesmo plano. Lula, acomodado em uma cadeira mais confortável. O ambiente austero da sala de audiências, a iluminação fria, as bandeiras (nacional e com o brasão da república) atrás do presidente, a gravação prévia de um programa que é em geral transmitido ao vivo e o tapete que manteve o companheiro à distância dos jornalistas deram um clima chapa branca ao evento, que, além do mais, tinha caráter festivo. Foi o milésimo Roda Viva. Para quem assistiu em Brasília, pela NBR, a conotação oficial era mais forte. Antes e nos intervalos, abusou-se da vinheta “NBR, a TV do governo federal”. 1 a 0 pra Lula
Gol de Lula – A primeira pergunta, do mediador Paulo Markun, é boa. Ele quer saber se o companheiro não tem nenhuma responsabilidade pelos fatos denunciados nos últimos meses. “O presidente da República, sabendo ou não sabendo, tem toda a responsabilidade”, afirma Lula. Mas depois ele afirma que sua responsabilidade se limita a mandar apurar a responsabilidade de terceiros. Nenhum dos seis jornalistas presentes devolveu: “Presidente, o senhor mandou apurar?”. 2 a 0
Gol de Lula – A certa altura, Rodolfo Konder esfria ainda mais o clima ao sacar a incrível pergunta: “O senhor acredita no sentido da história e em que direção o senhor acha que a humanidade está caminhando?” Levantou a bola pro companheiro discorrer, com pose de estadista, sobre – o quê!II?? – os rumos da história. “A história nos ensina muito”, pontificou o companheirocrata. A sua, pelo que se viu, ensina, por exemplo, a enrolar jornalistas. 3 a 0
Gol de Lula – O presidente operário recheia suas respostas de frases banais, mas, mesmo quando gramaticalmente incorretas, simples, compreensíveis, às vezes sedutoras: “Fernandinho Beira Mar era filho da mãe dele e não era o filho que ela queria ter”. “Tem dia que canso de mim mesmo, falo oito vezes num só dia”. “São gente” (a oposição). “Esse negócio de tática e estratégia eu sempre me confundo”. “Sou o único político que fala o time que torce” (Corinthians). Goste-se ou não dele, tem estilo com a bola nos pés. 4 a 0
Gol de Lula – Lula se gaba de afastar auxiliares ao menor sinal de suspeita, mesmo sem provas de que tenham praticado irregularidades. “Afastei quase 50 pessoas e entre elas há muitos inocentes”. Faltou perguntar: “Por que o senhor esperou o Roberto Jefferson pedir de público a cabeça de José Dirceu para afastá-lo?”. 5 a 0
Gol dos jornalistas – Questionado sobre o desvio de dinheiro público para financiar a máquina política do PT e do governo, o companheiro-chefe diz que o mensalão não existe, é “folclore”. Augusto Nunes lembra o caso do pagamento ilegal feito pelo Banco do Brasil à agência de publicidade DNA e enfatiza que já está comprovado o repasse irregular de verbas a políticos. Gol dos jornalistas. 5 a 1
Gol de Lula – Rei Lulão fala maravilhas do Bolsa-Família e destaca o crescimento dos empregos e da economia, durante o seu governo. Seu parâmetro é a era FHC, quando realmente foram menores os índices de desenvolvimento econômico e de geração de postos de trabalho. Ninguém lembra que o atual presidente foi brindado com uma conjuntura internacional mais favorável e que, nos últimos três anos, o Brasil cresceu muito abaixo da média latino-americana e mundial. 6 a 1
Gol dos jornalistas – Heródoto Barbeiro joga duro e deixa o presidente desconfortável ao indagá-lo a respeito dos recursos que o PT transferiu ao PL, na campanha de 2002. A informação, relembrou o jornalista, é do próprio presidente nacional do partido, Valdemar Costa Neto. 6 a 2
Gol de Lula – O companheiro, tratando ainda desse assunto, dá o troco. “Por que você acredita no que ele falou e não acredita no que estou falando?”. Heródoto, encabulado, baixa a bola: “Acredito, claro”. 7 a 2
Gol de Lula – Lula transfere para o ex-tesoureiro Delúbio Soares e o ex-marqueteiro Duda Mendonça a responsabilidade pelas contas de sua campanha eleitoral. “Não posso responder pelo dinheiro do Duda Mendonça”. Os jornalistas poderiam ter rebatido: “Presidente, pela legislação brasileira, a responsabilidade pelas contas de uma campanha eleitoral é do candidato. Juridicamente, o senhor não pode transferi-la a ninguém”. 8 a 2
Gol de Lula – É inacreditável, mas o presidente se apresenta como alguém que jamais se furtou a investigar o que quer que seja. “Acho que o povo deve aproveitar que estou na Presidência da República e, se alguém tem denúncia, tem de fazer porque ela será apurada”. Foi poupado da pergunta: “Presidente, pelo amor de Deus, o seu governo fez de tudo para evitar as CPIs e é acusado de sonegar informações tanto pelos parlamentares que investigam quanto pela própria Polícia Federal, como demonstrou relatório interno da PF recentemente divulgado pela Folha de S. Paulo”. 9 a 2
Gol dos jornalistas – Augusto Nunes faz Lula perder a paciência ao trazer à baila a frase que o companheiro pronunciou em Garanhuns (PE), reeditando Zagallo (“vão ter que me engolir”). Dessa vez, foi Lula quem engoliu. 9 a 3
Gol de Lula – Lula está tão à vontade que, sem ninguém perguntar, toca no tema Aerolula, o avião que comprou para suas viagens oficiais. “O presidente da República deste país, ele não é um homem, ele é uma instituição enquanto tiver mandato. E um avião é o mínimo que ele pode ter para fazer as viagens que ele precisa fazer, um avião confortável, que não faça barulho”. Os jornalistas ficaram devendo uma pergunta: “Mas precisava gastar quase US$ 60 milhões nisso?”. 10 a 3
Gol de Lula – O companheiro ressalta o compromisso da ministra Marina Silva e de sua equipe com as causas ambientais. Faltou um jornalista capaz de fazer o papel de chato e perguntar: “Mas a ministra Marina perde todas as disputas internas do governo nos assuntos que dizem respeito à área ambiental”. 11 a 3
Gol de Lula – Lula faz a mais convincente defesa do projeto de transposição do São Francisco já apresentada por um membro do seu governo. “Vamos levar água para 12 milhões de brasileiros, e estou tirando apenas 1% da água do rio São Francisco”. 12 a 3
Gol dos jornalistas – Heródoto ousa trazer à tona algo que está na cabeça de muitos: a crítica de que Lula trabalha pouco e que gosta mesmo é de viajar. Lula não se sai tão mal assim. “Nunca trabalhei tanto”, responde. Mas o destemor do jornalista tem sabor de bola na rede. 12 a 4
Gol de Lula – Augusto Nunes pega Lula em contradição lembrando da entrevista que concedeu, no exterior, dando como debelado o surto de aftosa, horas antes de serem confirmados mais três focos da doença. “Não é um caso de explicacionismo vazio?”, provoca o jornalista. Mas, aí, Lula enrola. Era a chance de avivar a contradição. A entrevista deriva para risos amigáveis em razão da insinuação de que Lula serviu carne com aftosa ao presidente Bush, no churrasco oferecido domingo na Granja do Torto. A pergunta que faltou: “Por que o Ministério da Fazenda reteve os repasses para a área de vigilância animal do Ministério da Agricultura, fato que contribuiu para o aparecimento do atual surto?“. 13 a 4
Gol de Lula – O presidente fala que ainda não decidiu ser candidato. Os jornalistas deixaram de dizer: “Presidente, o senhor não apresentou outra coisa nesta entrevista a não ser o discurso de quem já está em campanha pela reeleição”. 14 a 4
Gol de Lula – "Nunca falei que daria um cheque em branco ao Roberto Jefferson”, diz Lula. “É muito difícil eu dar um cheque em branco para alguém. Daria só para a Marisa". A frase, segundo relatos de diferentes políticos (inclusive o ex-deputado Roberto Jefferson), foi pronunciada por Lula em janeiro deste ano. Faltou a pergunta: “Por que, presidente, o senhor está desmentindo somente agora a autoria dessa afirmação, que é reproduzida pela imprensa há meses?”. 15 a 4
Gol de Lula – Nenhuma pergunta, nenhum comentário sobre o ministro Palocci, que está enrolado até a raiz do cabelo no esquema de propinas montado em Ribeirão Preto e no financiamento irregular da campanha presidencial de 2002. 16 a 4
Gol dos jornalistas – Pra terminar, farei como os entrevistadores do Roda Viva. Vou amaciar. Até porque, misto de corretor de imóveis e jornalista bissexto, não sei se me sairia melhor ali, cara a cara com o gol. Com todos os dribles e bolas nas costas, o Roda Viva, a TV Cultura e os seis jornalistas que participaram da entrevista estão de parabéns pelo feito de entrevistar o presidente. Foi a segunda coletiva que ele deu em quase três anos de mandato. Não deixa de ser um golaço. 16 a 5.
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