O que se pretende com esta exposição é proceder a um exame crítico deste fenômeno estético, que defino como Poéticas Perversas, presente em textos pós-modernos de autores brasileiros, de forma a lançar alguma luz sobre a violência existente na produção recente e recentíssima de escritores como Rubem Fonseca[i], Ignácio de Loyola Brandão[ii], eu mesma, Márcia Denser[iii], Sérgio Santanna[iv], Marcelo Mirisola[v], Fernando Bonassi[vi] e André Santanna[vii].¹
Como os demais do mesmo nível, tais escritores funcionam como porta-vozes, não só da Consciência como do Inconsciente Coletivos e, através das suas obras, denunciam, apontam, alertam, explicam, há mais trinta anos, a existência e o funcionamento de um “novo status nacional e universal”, tocados que são pela percepção das profundas correntes que moldam o “Sentimento do Mundo”.
De forma que os escritores têm cumprido sua função, mas uma triste marca da nossa atualidade é o desaparecimento do espírito crítico – e do próprio crítico – da cena pública em quase todas as áreas do conhecimento, do pensamento e das artes, e desaparecendo a ponte entre leitor e obra, a mensagem não chega ao seu destino. Assim, é preciso corrigir esse estado de coisas – é o que imodestamente abrange nossa proposta – e para essa análise vou utilizar as perspectivas crítico-teóricas de Frederic Jameson[viii], Mikail Bakhtin[ix], os brasileiros Ítalo Moriconi[x], Luíza Lobo[xi], Marilena Chauí[xii] e minhas próprias[xiii]. Outrossim, aos interessados, tais referências crítico-bibliográficas, bem como as dos corpus de análise, estão creditadas no fim deste texto.
Nesses textos, a crueldade se expressa de forma extremamente eficiente e impactante muito mais pelo trabalho de linguagem do que pela temática, uma vez que é a linguagem que dá voz ao que estou definindo aqui como Consciência Perversa Coletiva, que levou a um novo patamar a Má Consciência Coletiva.
A Má Consciência Coletiva, que predominou até os anos 60, é a consciência envergonhada da injustiça e desigualdade em relação ao Outro, objeto do discurso, algo extensivo aos pobres, oprimidos, minorias de todos os níveis, consciência que coexistia com o pensamento utópico, as ideologias de esquerda e as lutas de libertação nacional. A literatura e a arte produzidas sob tais condições são definidas como modernas, uma vez que os postulados do Modernismo, cujas obras hoje são canônicas, orientam sua criação.
Numa torção de 180 graus, em menos de vinte anos inverte-se o chamado Espírito de Época (Zeitgeist) e este se traduz pela chamada Consciência Perversa Coletiva – anti-solidária, fria, cruel, não só indiferente ao sofrimento alheio mas objetivando o mal do Outro, objeto do discurso (querendo mais é que o outro se foda), algo extensivo aos pobres, oprimidos, minorias de todos os níveis, consciência que representa o Pensamento Único Neoliberal ou Neoconservador que reduz Arte e Cultura a seu veículo ideológico. A literatura e a arte produzidas sob tais condições definem-se como pós-modernas.
Mas, ao contrário do Modernismo, “o pós-modernismo precisa ser entendido não como um estilo, mas como uma dominante cultural, uma posição política, implícita ou explícita, com respeito à natureza do capitalismo multinacional em nossos dias”.[²]
Esta Consciência Perversa Coletiva, expressa pela literatura nos exemplos a ser aqui apresentados, é uma das marcas da sociedade na nossa contemporaneidade.
Contudo, a marca da sociedade continua sendo a existência da divisão social, da divisão de classes, e esta institui a divisão cultural, donde a idéia de “cultura dominante” e “cultura dominada”. Graças às análises da ideologia, o lugar da “cultura dominante” é bastante claro: é dali que se legitima o exercício da exploração econômica, da dominação política e da exclusão social, mas essa dominação tende a ser ocultada, e é nesse sentido que opera a cultura de massa.
A Cultura como Ideologia
O contraste com a década de 60 é total: há quarenta anos a guerra ideológica entre as duas potências gerou idéias para abolir a pobreza do mundo e reabrigar os favelados. E hoje, o que tínhamos? Um Pensamento Único e Um Favelão Estratosférico no lugar do que chamávamos mundo; Emprego e Futuro Nenhum, aliás, atualmente, o Futuro seria o lugar mais perigoso do planeta, melhor não pintar por lá em hipótese alguma! A terra prometida da década de 60 nunca esteve nos mapas neoliberais do futuro e o último sopro de idealismo desenvolvimentista havia sido reduzido às Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDM) das Nações Unidos – mais conhecidas por Metas de Desenvolvimento Minimalista.
Voltando: nosso presente histórico foi caracterizado pela fusão de cultura e economia. A cultura (e a arte) não seria mais aquele lugar onde negamos ou nos refugiamos das duras realidades da luta pela sobrevivência, isto é, do capital, mas sua mais evidente expressão. Por exemplo, o século XIX utilizou a beleza como arma política contra o materialismo tacanho da sociedade burguesa, dramatizando seu poder negativo para condenar o comércio e o dinheiro e gerar um desejo por transformações pessoais e sociais no coração de uma sociedade industrial horrível. A arte era um espaço para se projetar novos e melhores mundos. E só o fato de imaginá-los tornava-os potencialmente possíveis. Por que então hoje não podemos vislumbrar na cultura tais funções políticas genuínas? Por que este vazio, este silêncio, este temor inconfessável, estas más intenções declaradas (ou não), essa atmosfera castradora e broxante no lugar da arte? Por que arte e cultura perderam o prestígio que gozavam anteriormente? Por que apenas restaram tantas manifestações/ocupações/instalações, o caralho, assépticas, anódinas, estúpidas? E dá pra se fazer algo melhor, ou algo realmente bom, genuíno, poderoso, sei lá, sob o império da grana?
Para Jameson, esta é uma questão que nos permite medir a distância entre os efeitos de uma mercantilização incompleta e o comércio visto numa escala global e tecnológica, na qual os últimos esconderijos que restavam – o inconsciente e a natureza, ou a produção cultural e estética e a agricultura – foram assimilados pela produção de mercadorias.
Numa era anterior, a arte era uma região além da mercantilização na qual a liberdade estava disponível, até na Indústria Cultural de Adorno e Horkheimer ainda haviam zonas da arte fora da cultura comercial (que para eles seria essencialmente Hollywood). O que definiria a cultura (e a arte) atual seria a supressão de tudo que estivesse fora da cultura comercial (porque fora da cultura comercial nada existiria), a absorção de todas as formas de arte, alta e baixa, pelo processo de produção de imagens.
Presentificando: hoje, a imagem é a mercadoria e é por isso que é inútil esperar dela uma negação da sua lógica de produção. É também por isso que toda beleza hoje é meretrícia e que todo apelo a ela, no pseudo esteticismo contemporâneo, não é um recurso criativo, mas uma manobra ideológica. Nesse esquema, que coagiu “o espetáculo como forma de resistência” para transformá-lo “em forma de controle social”, a cultura é o grande negócio.
De forma que hoje a arte já não é espaço utópico, tampouco refúgio ou contestação ou transgressão de coisa alguma. Interpenetrada pela lógica do lucro deixou de ser arte. O que é isso então? Bom, isso que chamamos cultura (ou arte, sei lá) passou a ser o veículo ideológico do Pensamento Único. E já que se trata de ideologia (ou interpretação do real difundida pelo poderoso da vez para continuar no poder) – aliás, mais uma – não é nada irreversível tampouco inexorável.
E aí está a Crise Econômica Norte-Americana, a Crise do Império – agora definitiva e sem reversão – como um fato a comprovar nossas palavras e redefinir por si própria como ilógica e irracional a “lógica do pensamento único”.
O capital se perpetua pelo perpétuo consumo do novo
Os dois níveis em questão, a infra-estrutura e as superestruturas – o sistema econômico e a estrutura de sentimento cultural – se cristalizam com o choque da crise do petróleo em 1973, o fim do padrão-ouro internacional, o fim das “guerras de libertação nacional” e o começo do fim do comunismo tradicional. Então, tecnicamente a era pós-moderna começa aqui.
Para o nosso teórico, a revolta pós-moderna contra essa situação – cujas características são obscuridade, sexualidade explícita, pobreza psicológica, expressões de desafio social e político que transcendem às mais extremadas transgressões do alto-modernismo (do quê o texto de escritor Marcelo Mirisola é um bom exemplo) – por outro lado, não só não escandaliza ninguém, como está em conformidade com a cultura da sociedade ocidental, pois o que ocorreu é que a produção estética hoje está integrada à produção das mercadorias em geral e há uma urgência febril em se produzir produtos que cada vez mais pareçam novidades, um sistema que se retroalimenta, a despeito das miragens, miasmas, cacofonias e equívocos culturais decorrentes desse esquema” valorativo”.
Assim, bom ou mau, trata-se do “último” e não do “novo”, quer dizer, não no sentido de “inovador de formas já existentes”, mas meramente de “última novidade”, e uma vez que tal procedimento” em si é sistêmico, é um dos elementos fundantes do capitalismo, ele anula, neutraliza o conteúdo (qualquer um) enquanto o consagra publicamente. Pois o sistema capitalista se perpetua pelo perpétuo consumo da última novidade: bota gênios e idiotas no mesmo nível.
E este “fator banalizador”, que coloca bobagens e genialidades no mesmo patamar, é um dos elementos mais perniciosos do sistema. Contudo, se pudermos visualizar seu funcionamento, mantendo uma indispensável distância crítica do mercado e seus produtos, talvez voltemos a ter esperança no sentido de que a obra de escritores como Marcelo Mirisola ainda possa ser apreciada, não por ser inovadora, mas por ser excepcional – no sentido de constituir uma síntese do humano pessoal com o desumano impessoal da cultura de mercado, um confronto no qual o humano ainda vence. Ao menos, até agora. Até porque na literatura e nas artes, toda novidade, posteriormente, terá que passar pelo crivo da excelência, isto é, revelar-se excepcional, caso contrário, simplesmente envelhece e morre.
Mas essa é outra discussão que cabe à crítica examinar, porque nosso objetivo aqui é antes descrever essa estética literária produzida contemporaneamente quando a cultura de mercado permeia e preenche todos os interstícios da realidade e da vida cotidiana. Como a cultura pós-moderna global, ela é a expressão superestrutural de uma nova era de dominação militar e econômica dos Estados Unidos sobre o resto do mundo, e nesse sentido o avesso da cultura é sangue, tortura, morte e terror.
Elementos Constitutivos do Pós-Moderno
1. Ausência de profundidade, com desdobramentos tanto na teoria contemporânea quanto em toda essa cultura da imagem e do simulacro. O fato é que ocorreram profundas transformações na experiência do espaço e do tempo, decorrentes das novas tecnologias. A fragmentação e a globalização da produção econômica engendraram dois fenômenos contrários e simultâneos: a dispersão temporal e a compressão do espaço. Tudo se passa aqui, sem distâncias, nem fronteiras, e tudo se passa agora, sem passado nem futuro. Fragmentação e dispersão do espaço e do tempo condicionam sua reunificação sob um espaço indiferenciado, plano, de imagens fugazes, e um tempo efêmero, desprovido de profundidade;
2. Enfraquecimento da historicidade tanto em nossas relações com a história pública, quanto em nossas novas formas de temporalidade, cuja estrutura “esquizofrênica” (segundo Lacan) vai determinar uma nova sintaxe. A profundidade do tempo e seu poder diferenciador desaparecem sob o poder do instantâneo, assim como a profundidade de campo, que define o espaço da percepção, desaparece sob o poder do lugar nenhum tecnológico. A telepresença e a teleobservação impossibilitam diferenciar entre aparência e sentido, virtual e real. Ao perdermos a diferenciação temporal, cessa a profundidade do passado, bem como a profundidade do futuro como possibilidade para ultrapassar situações dadas, compreendê-las e transformar seu sentido – eis o que se convencionou chamar de “condição pós-moderna” (Lyotard), quer dizer, a existência social e cultural sob a economia neoliberal.
Assim perdemos o sentido da cultura como ação histórica.
3. Esmaecimento dos “afetos” e um novo tipo de matiz emocional básico, chamado “intensidades”. É o que eu prefiro chamar de “des-solidarização” – a dor do Outro não dói em mim, como conseqüência dos itens 1. e 2.
4. Relações profundas com as tecnologias;
5. Intertextualidade e metalinguagem.
O inferno são os outros
Os textos do modernismo promovem uma “aproximação simpática” com o Outro, fazendo ou legitimando o discurso do oprimido, do excluído, daquele que não tem voz – empregadas domésticas, trabalhadores rurais, jagunços – deixando-os falar de seus sonhos, sentimentos, razões, esperanças, modos de vida, costumes, crenças. Esta é uma aproximação pelo lado luminoso, positivo, sobretudo porque corresponde a uma atitude e visão de mundo ideológicas representativas do Modernismo. Aqui estes não serão abordados, apenas marcados como referência, mas basta lembrar todo o Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, o próprio Drummond prosador.
Na década de
Por essa época surgem os primeiros grandes textos pós-modernos cuja característica mais significativa é que essa abordagem do Outro se inverte, torna-se uma “aproximação negativa”. Ao assumir o discurso do Outro, o escritor representa-o pelo lado obscuro, a sombra, a imagem em preto e branco do pobre/oprimido/marginalizado/excluído, que é ignorante, mesquinho, cruel, insensível, grosseiro, burro, canalha, sem contemplação para com os elementos da classe dominante (a qual pertence o escritor), ou seja, para com aqueles que o excluem e mantém sua condição miserável, a exemplo dos marginais
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(cena durante o assalto)
Seu Maurício quer fazer o favor de chegar perto da parede?
Ele encostou na parede.
Encostado não, uns dois metros de distância, mais um pouquinho para cá, muito obrigado.
Atirei bem no meio do peito, o impacto jogou o cara contra a parede, mas ele foi escorregando lentamente, ficou sentado no chão, no peito tinha um buraco onde cabia um panetone.
Viu? Não grudou na parede porra nenhuma.
Tem que ser numa porta, parede não dá, disse Zequinha.
Você aí, levante-se, disse para um magrinho de cabelos compridos.
Por favor, o sujeito disse bem baixinho.
Fica de costas contra a porta. Vê como esse vai grudar, Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado.
Eu não disse? Zequinha esfregou o ombro dolorido, esse canhão é foda.
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(Rubem Fonseca, Feliz Ano Novo)
No inverso do discurso utópico de Rosa ou Drummond, onde o mundo ganha sentido e beleza, esperança e prazer transcendentes, no texto de Rubem Fonseca todas as coisas são esvaziadas de beleza, sentido, esperança e prazer, revelando um mundo sem sentido, sem propósito e sem conteúdo – uma morte do mundo da essência, na qual resta apenas a funcionalidade impessoal da morte. A “aproximação negativa” do Outro é índice do esmaecimento dos afetos na cultura pós-moderna. Feliz Ano Novo é a história de um crime (ou vários) contada do ponto de vista dos criminosos – daqueles que não escrevem a História. Agressor ou agredido, o cotidiano é marcado pelas tensões geradas a partir das relações de poder.
E ficamos por aqui, semana que vem tem o volume 2 destas “Poéticas Perversas".
[¹] Talvez por ser o pioneiro, escrito no ínício de 70, só o conto de Rubem Fonseca tem marginais – assaltantes, estupradores,assassinos – como personagens. Nos demais, estes são pessoas comuns – como tu e eu, contudo, cada um a seu modo, fenomenológicamente, encarnam elementos da Consciência Perversa.
[2] JAMESON, Frederic. Pós-Modernismo, A lógica cultural do capitalismo tardio. pg.29: S.Paulo, Ática, 1997.
[i] FONSECA,Rubem. Feliz Ano Novo. coletânea de contos, 2ªedição. S.Paulo, Companhia das Letras,1989.
[ii] FERNANDES,Rinaldo de. Contos Cruéis. coletânea de contos: S.Paulo, Geração Editorial,2006.
[iii] DENSER,Márcia. Diana Caçadora/Tango Fantasma, reedição: S.Paulo, Ateliê Editorial, 2003.
[iv] MORICONI,Ítalo. Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século: Rio, Objetiva, 2000.
[v] In PS-SP, revista de literatura. São Paulo, Ateliê Editorial, 2002.
[vi]In Inspiração, edição especial, 450 anos de São Paulo. São Paulo, 2003.
[vii] In SP-PS, revista literária. São Paulo, Ateliê Editorial, 2002.
[viii] JAMESON, Frederic. Pós-Modernismo – A lógica cultural do capitalismo tardio: São Paulo, Ática,1997. A Cultura do Dinheiro: Rio, Vozes, 2002.
[ix] MACHADO, Irene. O romance e a voz – A prosaica dialógica de Mikhail Bakhtin. S.Paulo, Imago-FAPESP, 1995.
[x] MORICONI, Ítalo. A problemática do pós-modernismo na literatura brasileira(seminário): Rio, UERJ,2003.
[xi] LOBO, Luíza. Richard Rorty e a importância do pós-moderno no contextual cultural brasileiro: Working Paper Series.
[xii] CHAUÍ, Marilena. “Intelectual Engajado:Uma Figura Em Extinção?” in NOVAES, Adauto. O Silêncio dos Intelectuais: São Paulo, Companhia das Letras, 2006.
[xiii] DENSER,Márcia. “Poéticas Urbanas Brasileiras:Novas Subjetividades & Cultura de Mercado”: Revista D’Art 12. São Paulo, Centro Cultural São mPaulo, 2005. On-line in www.cronópios.com.br.
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