Márcia Denser*
Um dos bons textos críticos lidos ano passado, assinado pela socióloga Maria Célia Paoli, professora da USP, aborda, entre outras, a questão das políticas públicas no Brasil, sobretudo no que se refere à capacidade (quase uma vocação) de nossos governos de retirarem da população a possibilidade de ação organizada e política .
Mas a coisa vem de longe. Na década de 30, Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, detecta um “horror à realidade” no modo irrelevante e alheio do pensamento sobre o país. O predomínio da ciência e o privilégio dos especialistas em avaliar a sociedade, educando as massas com “meias-verdades” e na manutenção das hierarquias de mando e obediência (que supõe a exclusão dos incapazes de compreendê-la), constelam o que ele chama de “pedagogia da prosperidade”. Mas o progresso, como regra suprema da sociedade, está a serviço tanto daquele horror à realidade como duma confiança cega e idiota no poder milagroso das idéias.
Diz a autora: ”Longe da realidade o esperado milagre faz da ciência uma autoridade política que desterra o cidadão e exalta a pedagogia técnica como órgão da verdade, e seu resultado final é desarmar todas as expressões menos harmônicas de nossa sociedade, de negar toda a espontaneidade nacional”.
Nesse ponto, quando a idéia de país é imposta de cima para baixo, oficialmente, postiçamente, me ocorre o exemplo lapidar de Cassiano Ricardo (que a serviço do Estado Novo, malgrado ser bom poeta, sucumbe à ideologia) e seu inacreditável poema “Metamorfose”, conforme demonstra Affonso Romano de Sant’Anna em tese não menos lapidar •. Lá vai ele:
“Meu avô foi buscar prata
mas a prata virou índio.
Meu avô foi buscar índio
mas o índio virou ouro.
Meu avô foi buscar ouro
mas o ouro virou terra.
Meu avô foi buscar terra
mas a terra virou fronteira.
Meu avô ainda intrigado
foi modelar a fronteira:
E o Brasil tomou forma de harpa”
(In: Martim Cererê)
Diz Affonso: ”Nesse tipo de paráfrase (da série social) a história é reagenciada pela História. O poeta cede à lei e à ordem e reelabora uma mitologia que sirva aos interesses da nação. O poeta imitador encontra, enfim, o seu emprego. Centra-se na ideologia e produz ‘os hinos aos deuses e os encômios dos heróis’, como queria Platão. O poeta aderiu à República”.
Cometida na conjunção de linguagem antiga e mito, é uma “poesia” só acordes, só flores, onde tudo surge nacionalmente pintadinho de amarelo.
Saltando cerca de oitenta anos, no pós-tudo, no pós-desmanche, um outro exemplo literário me ocorre mas desta vez do ângulo crítico. Diz Roberto Schwarz no prefácio à Crítica à razão dualista/O ornitorrinco: “O avanço nos torna – quem diria – contemporâneos de Machado de Assis, que já havia notado no contrabandista de escravos a exceção do gentleman vitoriano, no agregado verboso a exceção do cidadão compenetrado, nas manobras da vizinha pobre a exceção da paixão romântica, nos conselhos de um parasita de fraque a exceção do homem esclarecido. Há maneiras e maneiras de enfrentar o desajuste que a seu modo resume a inserção do país – ou do ex-país, ou semipaís, ou região – na ordem contemporânea.”
Ex-país e pintadinho de amarelo.
¹“O mundo do indistinto: sobre gestão, violência e política” in A era da indeterminação, São Paulo, 2007.
² “Modernismo: Poéticas do Centramento e do Descentramento” in Música popular e moderna poesia brasileira, São Paulo, Landmark, 2004.
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