A bolsa de valores intelectuais é emotiva e calculista como todas as bolsas. Hoje temos talento, amanhã não. Éramos bons poetas na circunstância tal, mas já agora estamos com o papo cheio de vento; somos demasiado herméticos, demasiado vulgares, nosso individualismo nos perde; ou nosso socialismo; chegamos a dois passos da Igreja, o que nos falta é o sentimento de Deus; nossa prosa é lírica, nossos versos são prosaicos: esta autocrítica literária está assinada por Carlos Drummond de Andrade, profeta mineiro cismador, até porque sempre haverá uma pedra no meio do Continente Americano ao Sul do Equador, naqueles Tristes Trópicos de Fidel Castro, Levi Strauss e Imelda Marcos.
CDA, poeta e terrorista, precursor de todos os outros vindouros e passadouros, uma vez que, desde Elegia 1938, já propunha detonar a ilha de Manhattan, conforme os versos: “Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota/E adiar para o outro século a felicidade coletiva/Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição/Porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan”. Drummond escreve como porta-voz da consciência coletiva brasileira. E a consciência coletiva é atemporal porque tem o dom da ubiqüidade: move-se para trás, reportando-se ao passado, e para frente, visitando o futuro. Este poema, por exemplo, escrito da distância infinita de 70 anos atrás, indica as palavras futuras que diríamos – que teríamos que dizer – se tivéssemos coragem. Sabe, Carlos, já estamos no outro século, mas já adiamos para o próximo(século) a felicidade coletiva. Porque continuamos covardes.
Este mandato do escritor como porta-voz da consciência coletiva nacional está colocado num ensaio de Silviano Santiago, “Mário, Oswald e Carlos, intérpretes do Brasil” (ALCEU n.10, 2005), quando este se pergunta – retoricamente, claro – se há uma crítica e um novo projeto de Brasil desde os anos 1920 nas palavras e polêmicas dos escritores modernistas Mário, Oswald e Carlos Drummond de Andrade? O texto indica como a procura cotidiana duma interpretação para o Brasil, vivida a duras penas pelos jovens modernistas, fez parte da formação de cada um deles. Para Silviano, a interpretação do Brasil a que iam chegando, mês após mês, ano após ano, através da troca de idéias, discussões, polêmicas, cartas, manifestos, dezenas de artigos jornalísticos – configurando sempre o debate na cena pública – foi o pré-requisito para que pudessem escrever as obras que escreveram:
“Um escritor desprovido duma interpretação pessoal e original do Brasil nunca chegou (nunca chegará) a produzir uma grande obra literária. Portanto, ao lado da pesquisa em estética literária (no caso deles, centrada nos princípios da vanguarda européia), a busca de novas e corajosas interpretações do Brasil era (é) o toque de autenticidade e originalidade que seria (será) transmitido, primeiro, às futuras obras literárias, e em seguida, a todos nós, leitores delas. Estamos querendo dizer que os três Andrades – Mário, Oswald e Carlos – não calçaram luvas de pelica para levar a cabo a interpretação do país, era uma tarefa diária, destemida, contínua, que fazia parte do cotidiano de cada um deles. Eis nossa tese.”
Dá-lhe, mestre Silviano, você também não escreve de luvas – sem o pleno exercício da própria cidadania cultural, não tem autor nem obra que resista ao teste da posteridade – até porque essa tese também tem sido a minha ao longo de muitas crônicas (confira as colunas As Antenas de Drummond, Mário Brasileiro, Literatura Para Quê? Mercado Editorial). E notem como ele enfatiza “coragem e destemor” como algo essencial, algo inegociável no centro dessa busca por uma interpretação do país. Algo que eu enfatizei (atualizei?) ao concluir “que continuamos covardes” no comentário à Elegia 1938 (será que tal busca não acabará se tornando mais um inventário do irremediável? lembrando o título dum livro de Caio Fernando Abreu).
Mas por que o escritor (e sua obra) neste século 21 continua tão importante quanto no passado? Ainda tem algum valor a narrativa escrita frente à eficácia do cinema e da televisão? O que a escrita tem que nenhuma outra arte pode ter? (Salvo ser a única arte para a qual se confere o Prêmio Nobel?) Segundo Ítalo Moriconi, a escrita tem a capacidade única de mimetizar a interioridade da mente (mimetizar = representar). O cinema, a televisão, a performance (inclusive a dança) podem projetar cenas que representam o interior da mente, mas elas não podem apresentar o processo do pensamento, que é verbal. Quando num filme se quer representar o pensamento de alguém, é necessário colocar uma voz em off dizendo o texto que mimetiza o pensamento. Tais exemplos apontam para o limite da linguagem cênica e para a irredutível necessidade da presença do verbal na esfera da expressão.
Assim, a literatura sobrevive e renasce, neste século 21, afirmando seu terreno no campo daquilo que se pode chamar Plataforma 00. O 00 é o mínimo definidor do literário. O mínimo definidor do literário se ancora no caráter único da escrita como arte, por ser a única capaz de mimetizar ou reapresentar a intimidade do pensamento, a reflexividade do pensamento, a auto-reflexividade do sujeito individual. Todas as outras coisas que eram feitas pela literatura canônica do século 19, na esfera do narrativo e do ficcional, são hoje em dia feitas em concorrência ou com vantagem pelas linguagens midiatizadas (aquelas que são perpassadas pelas imagens técnicas) da civilização do simulacro. Para começar, uma narrativa cinematográfica ou televisual traz sobre a literária a vantagem da rapidez.
Resta a escrita, paixão perversa do eu (pois é na compulsão pela escrita que o mais baixo, o blogueiro, e o mais alto, Proust, coincidem). É por aí que se pode entender também por que o registro da vivência imediata tornou-se um clichê (mais um) na literatura contemporânea, a começar pela proliferação dos blogs, de São Paulo a Bagdá. É por essa redução ao mínimo comum multiplicável – Plataforma 00 – que se pode entender por que o fator autobiográfico (que alguns chamam de autoficcional) constitui o elemento mais vital na literatura atual. A literatura como fator de subjetivação, criação gráfica de um ponto de vista reflexivo sobre o mundo. A interioridade da mente possui duas dimensões igualmente importantes: uma dimensão dramática, cênica (muito trabalhada por Freud) e uma dimensão lingüística (latifúndio de Lacan). A dimensão lingüística é a dimensão reflexiva e auto-reflexiva. Ao pensar, estamos falando. É esta fala silenciosa da mente que a literatura, e somente a literatura, pode captar.
Dá-lhe, mestre Ítalo, por que ainda temos você e Silviano a nos lembrar, a nós, escritores, da nossa importância, nossa relevância e, naturalmente, que “existem mais lágrimas derramadas por preces atendidas do que por preces em vão”. Afinal, é preciso estar moralmente à altura do próprio talento. Ou você quer ser lembrado como aquele que inventou a ditabranda?
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