Márcia Denser*
Na base de qualquer escritor representativo existe uma biblioteca, no sentido de acervo literário dinâmico e permanente ao seu alcance. Por outro lado, escritor lê tudo, qualquer coisa, de bula de remédio, rótulo de embalagens até boletim de ocorrência policial. Para aprender “estruturas narrativas”. Mas a ficha só cai na cabeça dele de saber que é escritor a partir da leitura dos autores nacionais, porque para ocorrer o insight é preciso ler na língua mãe, pois só através dela é possível sentir a pulsação do “verbo atrás das palavras”, do verbo informe de idéias e ressonâncias perdidas, esquecidas, recuperadas desde muito longe, que o atingem percutindo o castelo de cordas da memória profunda. A leitura exclusiva de estrangeiros não forma os escritores de um país, naturalmente interligados entre si no tempo e no espaço pela mesma unidade lingüística.
Antonio Cândido só considera nossa Literatura plenamente formada quando aparece Machado de Assis no final do século XIX, porque este construiu a própria obra a partir da leitura e exame dos textos dos escritores brasileiros que o precederam, aprendendo com seus erros, aperfeiçoando-os, mas sempre em diálogo com eles. Daí a idéia de Literatura como “sistema”, um processo histórico integrado por autores, obras e leitores duma mesma região. Um infinito Projeto Poético entretecido como um vitral cósmico para o qual cada escritor contribui com seu caquinho que, por ínfimo que seja, se deslocado, todo o conjunto desaba.
É pela linguagem escrita, seja discursiva seja poética, seja de caráter pragmático (a obra de Borges foi toda concebida em forma de ensaio apócrifo) ou estético, que se dá a produção do pensamento de um povo. Segundo os grandes teóricos, a linguagem cria o pensamento e vice-versa, um processo de mão dupla. Isoladamente, a leitura não produz o pensamento, embora seu tempo seja o lento, isto é, de natureza semelhante à reflexão, ela é uma atividade passiva. Por outro lado, a escrita é ativa, exige esforço, extrema concentração: é desse trabalho que surge a descoberta, o dado novo, o elemento original.
Se a Literatura é a empresa de conquista verbal da realidade, segundo Julio Cortázar, o fato é que na raiz da identidade de povos altamente desenvolvidos está um conjunto de textos e autores notáveis. Povos e países – e ninguém mais que os anglo-americanos – são ciosíssimos de seus escritores e pensadores. A hegemonia ou dominação se dá pela imposição de uma ideologia cujo veículo é a linguagem discursiva, escrita e falada na língua do dominador.
Mas a conquista de uma voz própria, de uma voz pública, coletiva, universal, polissêmica, plurivalente, que se manifesta ao se atingir um estilo único, meta de todo escritor, seja mulher ou homem, é algo que precisa passar antes pelo exercício, pelo domínio, pela superação, pela incorporação de todo tipo de discurso. O que significa a colocação em primeiro plano da própria subjetividade.
Em função duma pesquisa de linguagem, como produto duma elaboração da linguagem como fenômeno estético, duma consciência plena da língua e da linguagem como instrumento de trabalho, o escritor não é falado pela língua, não vincula o discurso do outro, ao contrário, desloca o discurso da Tradição e do Alheio para colocar o seu próprio, conquistando o direito à própria voz, à própria fala.
PublicidadeE quem detém a palavra, detém o poder.
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