A visita de Bento XVI ao Brasil suscita inevitavelmente um balanço sobre a atuação da Igreja Católica em nossa sociedade nas últimas décadas, e essa tem sido negativa em todos os aspectos, como resultado da orientação retrógrada que a instituição assumiu a partir de 1978 sob o papado de João Paulo II (1978-2005).
A adoção de um moralismo conservador anacrônico, uma ortodoxia petrina, a extinção das políticas de favorecimento dos pobres, mulheres, negros e índios, o repúdio da Teologia da Libertação em todo o continente, a implantação da Nova Carismática entre as classes médias e sua guinada pró-mercado: em toda linha tem sido lamentável a ação da Igreja Católica, não admira o êxodo, e a julgar por medidas tão lamentáveis – porque absurdas, porque burras, porque alienadas, porque perversas – parece que ela está justamente se empenhando no sentido inverso, quer dizer, rumo a alguma “limpeza étnico-religiosa” ou “assepsia classista”. E tudo isso me lembra Borges quando escreve que no Paraíso os ricos continuam ricos, pois estavam acostumados à riqueza, já os pobres não vão para o Paraíso porque não o compreenderiam.
Porque desde os anos 80, com Karol Wojtyla, o Vaticano aderiu às correntes fundamentalistas de interpretação da fé (a Opus Dei que o diga), ao neoliberalismo combinado da dupla Thatcher/Reagan, ou seja, alinhou-se abertamente com os ricos. Absurdo para uma instituição que postula a caridade? Absolutamente. À sua época, Pio XII (1939-1958) também fingiu não ver o Holocausto judeu. Como agora, que a hierarquia católica proclama que nossos pobres não existem. Literalmente. Porque periféricos, colonizados e neocolonizados, em suma, descartáveis.
Realmente, não admira o êxodo, os católicos só tinham que dar no pé, aliás, sou mais Edyr Macedo, que além de ordenar “bispas”, distribui mui lampeira e estrategicamente camisinhas entre os fiéis nas barbas do sumo pontífice. Favelão ou Feira do Inferno? Terceiro mundo…
Mas nem sempre foi assim. Ao contrário. Entre 1958 e 1978, de João XXIII a João Paulo I, plenamente sintonizada com a época, a Igreja Católica conheceu vinte anos de resplendor progressista. E digo isso com duplo conhecimento de causa porque 1) vivi essa época; 2) dos seis aos dezessete anos estudei num colégio de freiras católicas. Confesso que vivi.
Questões como maternidade, contracepção, aborto, sequer se colocavam, uma vez que, naquela época, era muito claro que antes seria preciso sustentar-se, não depender dos pais ou assemelhados, pagar os estudos, construir uma carreira profissional, isto é, tais questões não se colocavam porque exigem a priori a conquista duma liberdade econômica (aliás a única que existe, não conheço outra, e vocês?), propiciando a autonomia para tomar decisões (sabem, o popular do livre-arbítrio só pode exercido no plano moral ou existêncial quando a sobrevivência está resolvida) quaisquer que sejam, tais como, dois pontos, ingerir ou não anticoncepcionais, oscilar entre a histerioctomia e o diafragma, ter ou não um filho, dois filhos, três, um time de futebol inteiro, fazer vinte e oito abortos no Senegal, etc.etc. etc. Como imputar a uma menina pobre, sem condições de manter a própria sobrevivência, a culpa ou responsabilidade "moral" pelo aborto? No nível dessa menina, a responsabilidade é "social", isto é, da própria sociedade que sempre e sempre através de suas instituições (igreja, Estado) novamente tira o corpo fora.
PublicidadeNa realidade não era muito importante, não era o centro das atrações (nem o imo das novelas da Globo), nem o casamento nem a maternidade nem o aborto nem a droga do filho e do marido e da sogra e todas essas questões muito privadas e comezinhas que nossas mães viveram que nossas avós também viveram e bisavós ainda mais tudo igual normal geral generalizadamente e há séculos.
Mas ocorrem temporalidades paradoxais.
Atualmente os jovens vivem tão submersos em hábitos, costumes, orientação moral-religiosa retrógrados, ultrapassados, totalmente anacrônicos em vista das conquistas científicas, dos avanços da legislação dos direitos humanos – até sem se dar conta do quanto são retrógrados – que não sabem – e não tem como saber – o quanto fomos longe, o quanto avançamos, o quanto era diferente para quem viveu plenamente os anos 60 e 70, porque aí se pode perceber o quanto vocês, jovens, foram lesados historicamente, engolfados sem mais aquela em sociedades pós-catastróficas.
Se o futuro existe em algum momento, alguma parte, foi lá, aconteceu lá, já aconteceu, pessoal, foi ontem.
Deixe um comentário