Em setembro do ano corrente, a Associação Nacional do Ministério Público de Contas celebrou 35 anos de existência e, para comemorar essa data, recebeu para uma live sem igual o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), professor Carlos Ayres Britto e que também foi procurador do Ministério Público de Contas (MPC) de Sergipe.
Na ocasião, foram abordadas matérias extremamente relevantes para o controle externo, que é exercido pelo Poder Legislativo, com o auxílio dos Tribunais de Contas, estes que são os responsáveis pela fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial de cada unidade da nossa Federação e de sua Administração direta e indireta.
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Assim, em nosso país, existem Tribunais de Contas em todos os Estados, com o acréscimo do Tribunal de Contas da União, do Distrito Federal, Tribunais de Contas dos municípios da Bahia, Goiás e Pará (órgãos estaduais) e Tribunais de Contas do município do Rio de Janeiro e de São Paulo (órgãos municipais).
Em cada Tribunal de Contas, funciona um Ministério Público de Contas, formado por procuradores concursados para a carreira, à exceção do TCM do Rio de Janeiro, que atualmente tem uma procuradoria especial, e do TCM de SP (com cinco conselheiros), não tendo MPC, tampouco a carreira técnica de auditor, conselheiro substituto, que é integrada igualmente por membros concursados.
Por sua vez, tribunais de contas são formados, via de regra, por sete julgadores, chamados de conselheiros (ou nove ministros, no TCU), provindos em sua maioria de escolhas políticas do parlamento e do Executivo, já que apenas dois deles são oriundos das carreiras técnicas referidas, procuradores do MPC e auditores, substitutos de conselheiros.
Nesse contexto, não poderia ter sido mais representativa a escolha do conferencista, já que o professor Carlos Ayres goza de larga produção jurídica e também no campo das letras, como poeta que é, com grande visão humanista, técnica e moral, predicados que dele fazem uma pessoa com autoridade e consistência para um debate compromissado com a virtude da civilidade e da beleza dos valores da decência e do respeito à causa pública.
O momento também nos convida à reflexão. Em meio a tantas dores, o mestre não deixou de abordar os fatos, fazendo menção à crise sanitária por nós vivida em face da pandemia, provocada pelo novo coronavírus, e que aprofundou a vergonhosa desigualdade existente em nosso país, um paradoxo fundamental e que, portanto, exige uma análise que busque objetivamente uma tentativa de superação dentro da nossa Constituição, que por ser democrática ostenta, como enfatizado, um valor continente, sendo tudo o mais conteúdo.
Com essas palavras, enfrentou-se a promessa constitucional de um estado democrático vocacionado para a realização dos direitos sociais, em meio a uma sociedade “virtuosa”, com finalidades muito claras, tais como: a promoção do bem de todos e a defesa da democracia.
Para tanto, é preciso tomar como base a desconcentração de toda autoridade, na perspectiva orgânica e institucional “republicanamente falando”, contexto em que se insere, por exemplo, o Ministério Público (MP) e, em especial (tema do qual nos ocuparemos), o Ministério Público de Contas (MPC), que atua no âmbito dos tribunais de contas, “mas não pertence a nenhum deles, e sim, à sociedade civil”.
O tema instiga visto que o Ministério Público, em geral, ganhou contornos próprios a partir da Constituição Federal de 1988, deslocando-se das estruturas de poder e compondo uma instituição, incompatível com a ideia de subalternidade, dependência e hierarquia.
Nesse sentido, na Seção I, do Ministério Público, artigo 127, a Constituição Federal expressamente estipulou que é incumbência do MP a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Na sequência, no artigo 130, expressou que “aos membros do Ministério Público junto aos tribunais de contas aplicam-se as disposições desta seção pertinentes a direitos, vedações e forma de investidura”.
Contudo, após uma interpretação emanada pelo STF ainda nos anos 1990, passou-se a entender que o MP de Contas é o único, na conformação do MP brasileiro, que não possui autonomia orçamentária financeira, estando dependente materialmente dos tribunais de contas nos quais atuam. Na sequência, todavia, reconheceu-se a seus membros a plena independência funcional.
Essa situação tem gerado grave distorções nos estados, onde não raros procuradores são tolhidos em suas atribuições, perseguidos e retaliados, na mais autêntica defesa da centralização do poder. Essa forma particular de interpretar o artigo 130 da Constituição Federal pode ser comparada àquilo que Carlos Ayres chamou de um “defeito de fabricação”, equivalente a um atraso secular, que atende por uma expressão muito interessante, “colonização mental”, e que representa um véu a encobrir o olhar do intérprete do Direito, que se recusa a ver, nas palavras do brilhante professor, “sistematicamente, atualizadamente e desassombradamente a maravilha que é a Constituição que temos a nosso dispor”.
Interpretando na sequência o mesmo dispositivo, o jurista defende que a leitura da nossa Constituição, eminentemente principiológica ou “exuberantemente e materialmente expandida”, exige um olhar inter-relacionado, devendo a parte ser lida no todo. Cada dispositivo nas linhas e entrelinhas, cada princípio e sub-princípio, no texto e contexto, em sua perspectiva sistêmica. De fato, em seu artigo 5º, parágrafo primeiro, a nossa Lei Maior expressa que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição NÃO excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”.
Dessa forma, o MP que atua junto ao TC não está dentro, mas junto, ao lado dos tribunais de contas, e a expressão “direitos”, no artigo mencionado, não pode ser interpretada, restritivamente (assim como as vedações), no sentido de tolher a plena autonomia, essencial para o igualmente pleno exercício dessas funções.
Visando tornar mais viva a argumentação, Carlos Ayres propõe um espaço descontraído, no qual a opinião divergente faria conviver, no mesmo cenário jurídico, dois ministérios públicos: um MP de “smoking” e outro, de mangas de camisa, bermuda e sandálias. Como isso não seria possível, é preciso entender que há um só MP em dignidade institucional, apesar das suas especializações funcionais serem diversas: um, para a prestação jurisdicional em sentido genérico e o outro, para assegurar a prestação jurisdicional de contas, em sentido monotemático e específico.
Assim, a ideia de Ministério Público de Contas só pode ser uma: de instituição custodiadora do ordenamento jurídico, que tem o dever de velar pelo respeito aos princípios constitucionais da administração pública. – Senão, para que chamar-se de Ministério Público?
Nesse fio condutor, o argumento se agiganta ao verificar que os princípios constitucionais dos artigos 37 e 70 se constituem em deveres e, se assim o são, convertem-se em direito dos administrados a uma Administração Pública legítima e, portanto, direito de ver o MPC atuando para velar pelo respeito a esses princípios.
Por esse modo, então, para a Constituição, não há dois MPs em prestígio, mas MPs, cujas competências estão, mutadis mutandis, a serviço das mesmas finalidades democráticas, republicanas e sociais.
Portanto, dentro desse contexto, a Constituição Federal no artigo 130 só pode ter querido permitir a adaptação das competências do MP, em geral, à judicatura de contas, específicas e listadas nos artigos 70 e 71 da Constituição Federal. Ou seja, as competências dos MPCs são afeiçoadas às finalidades dos TCs respectivos, mas na perspectiva do regime democrático e dos direitos sociais.
Com esse olhar, buscando a melhor interpretação que atenda aos anseios da nossa Constituição, abrangente e totalizante, é possível confirmar, também, que a norma utiliza o verbo no sentido mandamental, “aplicam-se”, sem margem a qualquer relativização. E, para deixar ainda mais claro, é específica: “APLICAM-SE AS DISPOSIÇÕES DESTA seção pertinentes a direitos”, palavra no plural, ao Ministério Público que atua junto às cortes de contas em nosso país.
E tudo isso ocorre, mais uma vez, porque a Constituição em vigor é democrática, e não poderia, nesse contexto, ter querido prever um Ministério Público aprisionado a interesses ou a finalidades não republicanos, isto é, um MP à disposição do Poder Judiciário, altivo e autônomo, e um MPC à disposição dos TCs “para chamar de seu” e, não, da sociedade. Cativo e fragilizado.
Ao finalizar, já sobejamente convencidos e embevecidos pelo misto de aula e sarau de poesia, Carlos Ayres nos conclama a resistir e a apostar que a miopia interpretativa há de ser substituída, por todos aqueles que se dão ao devido respeito profissional, pela melhor interpretação que se abra ao objetivo emancipatório do artigo 130 da nossa Constituição. Uma nova abordagem que, em síntese, revele “afetividade constitucional, sem a qual não há efetividade constitucional”, no sentido de realizar a vontade da Constituição, isto é, de entender e transformar a melhor normatividade constitucional em experiência de vida e realização de seus valores republicanos, democráticos e sociais.
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