Comemora-se mais uma vez “O Dia Internacional da Mulher”, e este ano eu gostaria de prestar tributo àquela que, para mim, representa o eterno feminino e que está às vésperas de partir: minha mãe. O conto A irresistível Vivien O, dedicado a ela, numa leitura mais ampla, propõe um resgate do feminino e sua memória cujo cenário é São Paulo anos 50.
A irresistível Vivien O’Hara
De origem obscura e controversa, mistura de celtas, italianos e irlandeses, filha de Rosa e Dioniso Trask, um casal de fazendeiros do interior do estado cuja numerosa e estrídula família – seis meninas e três varões – emigrou para a capital durante a segunda guerra, Vivien constituía uma espécie de síntese de todo o capital estético das divas de Hollywood dos anos 50, mas como quem saca sem fundos. Quem tentasse analisá-la traço por traço, perceberia porque: eram todos irregulares. Um exame decepcionante e tão inútil quanto seguir pistas falsas. Vistos em conjunto produziam a tal síntese – a desconcertante alquimia da beleza. Conseguia parecer-se com Vivien Leigh e Maureen O’Hara e ainda reservar personalidade bastante para si própria.
De forma que Vivien deveria ter sido catastroficamente bela porque única e, consequentemente, irrepetível. Mas isto não deve ter ocorrido a Álvaro quando a quis sua mulher e mãe dos seus filhos.
Vejamos: os negros olhos circunflexos abrigavam um demônio fixo de rocha e pássaro, a boca, fina como um risco, subitamente se alastrava nem sorriso esfuziante inacessível marcado por covinhas: a beleza não admite pontos finais. Os cabelos ruivos ocultavam o crânio irregular onde o nariz despontava atrevido, Rita Haywoorth com pudor, sem as luvas negras ou o decote expectorante, mas a sugestão velada de tudo isso. Sutil desequilíbrio de luz e sombra, fixidez e instabilidade, estrela de uma constelação se movendo para dentro de um universo pessoal que aguardava em suspenso a vinda de Tyrone Power que a levaria para um outro céu de néon e cetim cor-de-rosa, essa garota tão tola, tão simplória, tão Cinderela montada no leão da Metro.
“Depois do banho ela imitava a Rita Haywoorth diante da penteadeira, atirando para trás os cabelos vermelhos”, diz Júlia.
“Um negócio bem repugnante. Parecia borsh!”, Amanda faz uma careta.
“Nunca haverá mulher como Gilda” dizia Vivien.
“Nunca haveria mulher como Vivien, queria dizer”, diz Júlia.
Naturalmente, eu podia mencionar a pele salpicada de sardas de gata irlandesa, os tornozelos grossos, a ressurreição lenta pela manhã e apenas um curso primário, detalhes que a tornavam ainda mais bela, porque as mulheres verdadeiramente belas são as de carne e osso, deste lado da realidade, aquém do sonho, da foto na parede da juventude, das promessas do celulóide e ao alcance dos homens, do amor, de Álvaro, especialmente.
A irmandade materna feminina emergiu com o sonho americano na década de 50 e pergunto-me até que ponto não foram os mesmos os sonhos que assombraram minha infância quando, encantada, contemplava tia Jane ou tia Marjorie na penteadeira iluminada por lâmpadas de camarim, porque Marjie era cabeleireira tendo, presumo, íntimas ligações com circos e teatros de revista, a mesma relação feérica de rugas prematuras, cosméticas cicatrizes acrobáticas que viviam misteriosamente mudando de lugar ao sabor da fantasia, além desse perfume abafado pelo colcha chinesa de péssimo gosto, misturado ao típico ranço de mulher amanhecida que ninguém e todos sabiam o que ela fazia nas noites de sábado.
A irmandade materna emigrou do interior com a guerra, a crise do café, o cinemascope, o know-how, com as raízes cortadas também pela miséria, daí o trabalho nas fábricas de biscoitos, nos laboratórios farmacêuticos, na Casa Anglo-Brasileira, solidariamente amontoada nos cortiços do Bixiga, desmantelados e febris mas obedecendo uma ordem invisível – as leis não escritas dos movimentos migratórios a determinar que os jovens venham na frente abrir espaço para os pais e avós, o suficiente talvez para conter uma cadeira de palhinha na porta ensolarada do beco onde quietamente será confinada a velhice, a ruína, o orgulho espezinhado, como também os fundamentos do altar da memória, tão mais grandiosa quanto distante no tempo e espaço, nos estreitos limites de um beco, de um assento de palhinha.
O pequeno Dioniso, o avô irlandês, jogador e sanfoneiro arruinado, filho único de três fazendas perdidas em mesas de pôquer, cuja qualificação profissional consistia em não ter nenhuma, graças à sua alma de moleque e reprodutor passivo de nove filhos, o avô Dioniso depressa arranjou um posto de vigia noturno na CMTC para manter as aparências de chefe de família, enquanto durante o dia lampeiramente fazia progressos na auspiciosa carreira de bicheiro, “Uma verdadeira mina!”, proclamava entre duas risotas velhacas e apostava todo o salário na borboleta. Perseguiu-a até a morte, este bichinho tão poético.
Tia Jane seria a eterna Miss Cinelândia, por incríveis sistemas paramnésicos a Jane, namorada do Tarzan, ou Glória Grahame, amante de Lee Marvin, o gangster que lhe atira ácido na face, ela e Marjorie eram mulheres mais fatais a si próprias, fatias em carne e osso do produto ao avesso do sonho americano, do grande engano acalentado na penumbra das salas de projeção cheias de pulgas de terceira classe, as mesmas que, mais tarde, estariam picando e sugando por baixo da colcha chinesa de péssimo gosto, após o intervalo esquecido do amor entre aquele sonho e este aqui, mais próximo, feito de lençóis gosmentos e mau-hálito, racionalizando o esquecimento dos intervalos espúrios do amor, porque os anjinhos, porque a parteira, porque esses cafajestes, porque a vida realmente não era tão cor-de-rosa.
Em 1947 o verdadeiro nome do amor vinha impresso em letras douradas, assumia as formas ovais e oblongas das caixas de bombom, brilhava nos créditos e títulos na marquise do cine Marrocos anunciando E O Vento Levou, nos vestidos e toaletes, absurdas simbioses de cortinas velhas, retalhos de sofá e mosquiteiros. Se a invenção é filha da necessidade, em 1947 o pai era Darryl Zannuck.
“Viu só, Marjie? Scarlett faz o mesmo!”, tagarelava Jane como quem fala da vizinha.
E a juventude, os bolinhos do entardecer, os tipos mal-encarados, os bondes, as longas filas do pão e novamente os bondes, as matinês dançantes, as novelas da rádio São Paulo. Vivien: cabeça cheia de sonho, pés plantados na realidade. Ao acordar, lavava o rosto com sabão amarelo espiando pela vidraça o atordoante, fuliginoso casario sob um céu de filme polonês amanhecendo por entre nuvens sujas. Tinha apenas um casaco e um par de sapatos de cor indefinida mas, ao sair, os cabelos ruivos adejavam no espelho do porta-chapéus, deixando um rastro de fagulhas elétricas, um perfume de madressilvas. E tinha dezoito anos. O bastante para ser feliz.
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