Atitudes latinoamericanas – Latitudes – lideram mundialmente a resistência política ao neoliberalismo globalizado a partir do início do século XXI – daí chamá-las Latitudes, abrindo o volume um desta série que irá incorporar reflexões de autores como Emir Sader (na verdade, foi o último livro dele A Nova Toupeira que deu o start), Naomi Klein, cuja obra já foi tema de outra série tríplice, Roberto Schwarz, Paulo Arantes e outros.
Por que a América Latina, que foi o primeiro laboratório das experiências neoliberais, num prazo relativamente curto tornou-se o elo mais fraco da cadeia neoliberal em escala mundial? pergunta-se Emir Sader no capítulo "Os ciclos neoliberais"¹, mas Naomi Klein enfatiza que é precisamente por ter sido o primeiro continente a experimentar o "capitalismo de desastre", que a América Latina foi a primeira a reagir a ele pois teve mais tempo de se refazer dos choques do passado.
Segundo Klein², de todas as diferenças, a mais impressionante é uma consciência perspicaz da necessidade de proteção contra golpes, terapeutas de choque nacionais e estrangeiros treinados na Escola na Chicago, colapsos monetários, intervenções e endividamento com o FMI. Embora repousem numa longa história de militância, os movimentos contemporâneos da América Latina não são réplicas de seus predecessores: não são mais centralizados mas constituídos em redes progressistas altamente descentralizadas. A proteção mais importante da América Latina contra choques futuros (e, portanto, contra a doutrina do choque) vem da independência do continente em relação às instituições financeiras de Washington, resultante da maior integração entre os governos regionais.
A Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA) é a resposta do continente à ALCA, sonho corporativista, agora sepultado, de uma zona de livre-comércio que se estenderia do Alasca à Terra do Fogo. O principal benefício é que a ALBA se baseia essencialmente no escambo, deixando os países decidirem por si mesmos quanto vale cada mercadoria ou serviço, em vez de permitir que negociadores de Nova York, Chicago ou Londres definam os preços por eles. Isso torna o comércio muito menos vulnerável ao tipo de flutuação brusca de preços que devastou as economias latinoamericanas no passado recente. Cercada de turbulentas águas financeiras, a América Latina está criando uma zona de relativa calmaria econômica e previsibilidade, um feito considerado impossível na era da globalização.
Voltando ao texto do brasileiro Emir, que aprofunda e complementa a abordagem da pesquisadora canadense nas questões pertinentes à América do Sul: retrospectivamente, ele assinala que, desde os anos 30, o continente viveu cinco décadas de contínuo desenvolvimento econômico promovido por projetos de industrialização substitutiva de importações, em reação à crise de 1929. Tais processos foram acompanhados de projetos político-ideológicos de caráter nacional, que fortaleciam a classe trabalhadora, os sindicatos, assim como as ideologias e as identidades nacionalistas. Paralelamente constituíram-se novos blocos sociais de poder.
A propósito, Roberto Schwarz³ lembra que, no campo da cultura, as novas alianças e simpatias de classe operavam transfusões de experiência social e novas combinações de forma e conteúdo: a cultura do cinéfilo dava de encontro com o movimento camponês, o estudante educado no verso modernista se arriscava na música popular. De lá para cá, boa parte da produção em cinema, teatro, música popular e ensaísmo social deveu seu impulso à quebra das barreiras de classe esboçada nos anos 60. Ele diz: "Para o professor cinquentão de hoje não é fácil explicar aos alunos a beleza e o sopro de renovação e justiça que na época se haviam associado à palavra democracia (e socialismo)". (…) "Foi um momento forte de tomada de consciência contemporânea, nacional e de classe, que se traduziu por uma notável desprovincianização do pensamento. Não foi por acaso que o Cinema Novo, a Teoria da Dependência, a obra de Celso Furtado tiveram repercussão internacional. À guisa de contraprova, note-se como a perda desse dinamismo devolveu a cultura do país à sua irrelevância tradicional."
E foi muitíssimo mais longe: a perda desse dinamismo levou à "extinção do pensamento", como demonstra Paulo Arantes 4, haja vista o conformismo complacente em que se encontra a intelectualidade brasileira, a ausência de pensamento que contamina nossos contemporâneos e suscita tanto a generalização da cretinice e do oportunismo em matéria de política, quanto o embotamento da percepção – é a falência da elite intelectual, que parece jogar a toalha ao desistir, a um só tempo, do Brasil e da reflexão sobre o processo histórico em curso. É a "extinção da inteligência dos inteligentes", ou melhor, "o ajuste intelectual tucano-petista" que, através do discurso neoliberalóide, se esmera em tornar aceitável o inaceitável.
Como chegamos a isso? Por que chegamos a isso?
Prosseguimos na próxima coluna.
Em tempo:
Os jornalões, revistonas e redes campeãs de audiência no Brasil ignoraram um artigo publicado, dia 7 de fevereiro, pelo Wall Street Journal. Nele, está escrito: "Nos anos seguintes aos ataques terroristas, com o foco da política externa dos EUA desviado para o Oriente Médio, o Brasil e a Venezuela disputavam a posição de substituto dos EUA como principal negociador nos assuntos do hemisfério. Agora a queda dos preços do petróleo aponta o vencedor: Brasil. Embora a economia brasileira rica em commodities, 10ª maior do mundo, deva ser afetada pelo declínio mundial, espera-se que tenha conduta melhor do que a maioria, mantendo crescimento enquanto EUA, Europa e Japão contraem, conforme previsão de economistas (…). O poder penetrante da diplomacia do Brasil é desdobramento benvindo para os formuladores da política externa dos EUA".
É sintomático esse reconhecimento vir do Journal, publicado pela Dow Jones, hoje parte do império Murdoch de mídia. Até porque grupos de reflexão mais à esquerda que debatem questões latino-americanas, como o COHA (Council on Hemispheric Affairs), há muito a e insistem em escancarar o erro da ênfase dos EUA ao usar a Colômbia como ponta de lança na América do Sul.
Até o título do artigo pode matar de inveja os tecnocratas sobreviventes da “seleção” tucano-demo-pefelética: "Economia alimenta ambições do Brasil além da América do Sul". E embora o Journal o tenha publicado sob a rubrica "Negócios", a análise estava no contexto da política externa – o governo Obama e o salto do Brasil, a partir da economia, e seu novo papel no mundo.
Eis as Novas Latitudes!
1In A Nova Toupeira, pg.49. São Paulo, Boitempo, 2009.
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