Márcia Denser*
Semana passada, recomecei a dar meu Estúdio de Texto, laboratório de criação avançada, no Centro Cultural, terrivelmente concorrido (cinqüenta candidatos só na fila de espera) e lá estava eu, em meio à aula inaugural com os primeiros vinte e dois selecionados, quando surgem Marcelo Mirisola e Ronaldo Cagiano, escritor de Brasília que acaba de se mudar para Sampa. Sorte nossa, azar de vocês aí. Aliás, Cagiano é uma curiosa mistura de cavalheiro discretíssimo & agitador cultural metido em várias paradas, fato que não é absolutamente um paradoxo porque alguém que trabalha há 24 anos numa instituição financeira pública é profundo conhecedor do coração humano, sobrevive manuseando valores alheios e, afinal, o que fazem os escritores senão precisamente ISSO?
Naturalmente, a coisa tem vários ângulos, alguns bem negativos, mas escritores para serem bons precisam ser honestos – inclusive à revelia de si próprios, que ninguém é santo. De imediato, posso citar dois, Osman Lins, escriturário do Banco do Brasil, recusando promoções em nome de mais tempo livre para escrever, e Esdras do Nascimento, também do Banco do Brasil, amigo de Osman, um verdadeiro gênio para detectar talentos literários.
Fomos jantar os três e rolaram aquelas conversas literárias vagabundas que implicam troca de figurinhas, discreta sondagem de preferências e visões de mundo do recém-chegado, cumplicidade incondicional entre mim e Mirisola, Cagiano contando sua viagem a Teerã, onde esteve dando palestra com texto previamente censurado – a sensualidade da nossa mulata, por exemplo, não passou – a partir do quê chegou-se à conclusão de que o fundamentalismo religioso dos talebãs fundido ao fundamentalismo neoliberal da onipresente cultura de mercado – coexistência de burkas & tênis Nike – superpõe censura religiosa local & imposição mercadológica imperial (naturalmente aí Bush, talebãs e demais poderosos de pleno acordo), deixando a população sem outra alternativa senão render-se ao pior dos dois mundos.
Merda no Além e no Aquém, merda em cima e embaixo, assim na terra como no céu. Amém. Realmente, a única guerra que existe é contra os civis, as populações civis do mundo.
O negócio é o seguinte: no mundo, você só come no MacDonald’s (embora, se o fizer, foda sua saúde,o filme Supersize-me esgota o assunto), se trata só se tiver plano de saúde (que não cobre quase nada embora cobre os olhos da cara, enquanto neoliberais de plantão destroem o que resta da saúde pública, Serra à frente), não fuma (embora a indústria de cigarros continue lucrando horrores), não fala mal dos ricos e poderosos, aliás, melhor não dizer nada, enfia uma burka e vai te foder, já que no Paraíso te esperam…o quê? Setecentas virgens! Local e seres que não interessam se você for mulher ou viado ou broxa ou Bento XVI ou Clodovil, aliás, o Além, cristão ou islâmico, é um mecanismo de controle social arcaico demais, maluco e idiota demais.
A população pode ser ignorante, mas não é burra. Deus, pra quem acredita, pode ser louco, mas também não é burro. Coisas simultaneamente loucas & burras: o Paraíso ou o Movimento Cansei & ideólogas Hebe Camargo/Regina Duarte/Ana Maria Braga/Ivete Sangalo… não resistem ao ridículo mais elementar, concluímos filosoficamente, já engatando na entrevista do João Moreira Salles, 45, filho de banqueiro e dono da revista Piauí¹.
Nela, ele discorre instrutivamente sobre o Brasil medíocre, irrelevante (ele não quis dizer descartável?) e sem rumo de hoje, em todos os aspectos, incluindo as artes, literatura, cinema, porque “é importante dentro de determinado caldo cultural. Quando esse caldo desaparece, pode haver cineastas extraordinários, e eles existem, mas os filmes não têm mais centralidade. O cinema teve o seu momento, e o momento passou. A centralidade hoje está na tecnologia, na ciência. Houve um deslocamento do que é vital para uma cultura. O que há de vivo hoje nas artes e tem algum impacto é a arquitetura. Não consigo imaginar em nenhuma outra manifestação das artes um impacto tão grande quanto o museu de Bilbao produziu na cidade de Bilbao e, por conseguinte, na Espanha”.
Pois é, Bilbao, um pesadelo arquitetônico que nem Borges conceberia porque, ao contrário dos arquitetos de Bilbao, não brincava em serviço.
PublicidadeReferindo-se à casa da Gávea onde, entre os anos 50 e 60, seu pai, o banqueiro e diplomata Walther Moreira Salles, recebia o jet set das artes, economia e política de dentro e de fora do Brasil, locação do seu filme Santiago, cujo tema são as memórias e a persona do mordomo dos Salles, assunto aliás extremamente relevante para o público brasileiro, e co-ra-jo-so (segundo a brilhante entrevistadora), ele diz: “Aquela é uma casa da década de 50, quando o Brasil tinha uma arquitetura importante; produzia uma literatura muito inovadora; teve grande ambição no cinema, com o cinema novo; e na música, com a bossa nova. No concerto geral das nações, o Brasil não era irrelevante”.
Esse João é um exemplo lapidar do “intelectual-banqueiro”, amigo do ex-presidente FHC, ambos adornos críticos da nossa mais fina sociedade, devidamente categorizados por Paulo Arantes, mas o que ele não disse (nem lhe foi perguntado) é que o Brasil medíocre de hoje é o resultado da ação duma elite predadora que, sobretudo nos últimos quinze anos, na etapa de financeirização do capital, têm bancos e banqueiros à frente do desmanche do país e seu projeto, logo da sua cultura e arte, Moreira Salles incluído.
E esse João a fazer um filme sobre Santiago, o mordomo da família há três gerações e os dourados anos 50/60, esse João, dono da revista literária Piauí (“somos imprensa nanica! Somos combativos. A gente é contra o sistema (risos)”) é o mesmo que diz que a arte (literatura incluída) brasileira se tornou medíocre, irrelevante.
Ah, sim, à pergunta da Folha: “No filme Santiago, você afirma não ter se dado conta, nas filmagens, que o conflito de classe contido na relação patrão/empregado estendia-se à relação diretor/entrevistado. É por que pensava em sua relação com Santiago pela perspectiva do afeto, não como patrão?”. Ele responde: ”De maneira nenhuma quero parecer alguém com maior identificação com quem está do outro lado do conflito de classe, que era mais próximo dos empregados. É algo tipicamente brasileiro. Está em Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, a impossibilidade de a gente não transformar as relações profissionais, principalmente as ligadas à vida domiciliar, em relações que também são pessoais. O afeto atravessa o conflito de classe, rompe um pouco da barreira imposta, é subversivo nesse sentido” (grifos meus).
É isto. Ideologicamente, o texto dele soma duas inevitabilidades: a da ideologia do favor com a globalização (vide Arantes e Schwarz), o Brasil é irrevogavelmente assim. E a literatura brasileira não existe.
Bom, pelas Caras da Piauí e sua "proposta editorial", aprioristicamente esse dado já existia. Isto é, que a literatura brasileira não existisse é conditio sine qua non da existência da própria Piauí. Um país que premia exclusivamente escritores irrelevantes e festeja a mediocridade só tem mesmo que se foder literariamente. Felizmente, a declaração de Paulo Zotollo, presidente da Philips, retificando que na verdade é o Piauí que não existe, nos fez suspirar aliviados.
¹Folha de S. Paulo, 13/08/2007.
Nota da Redação: O Congresso em Foco procurou o cineasta João Moreira Salles para que ele se manifestasse sobre o artigo. Mas não recebeu retorno até o fechamento desta edição. O espaço continua aberto.
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