Há um filme de ficção científica de 1985 que se tornou um cult. Trata-se de “Inimigo meu”. Nesse filme, dirigido por Wolfgang Petersen, há uma guerra entre humanos e um povo alienígena. No meio da guerra, dois pilotos de naves espaciais inimigas são abatidos e caem juntos num mesmo planeta. Ilhados ali, os dois inimigos, vividos por Dennis Quaid (o humano) e Louis Gosset Jr. (o alienígena), vão precisar superar o ódio mútuo e terão que aprender a conviver. O filme acaba sendo uma boa parábola sobre preconceito, intolerância, etc. Com a sacada legal de Dennis Quaid ser um ator branco e Gosset Jr., embora a maquiagem esconda, ser negro.
Os seguidos problemas vividos entre o PT e o PMDB desde antes mesmo da posse de Dilma no dia 1º de janeiro lembram muito a convivência forçada de Quaid e Gosset Jr. em “Inimigo meu”. Chamemos de “Terra da Governabilidade” o planeta em que os dois partidos vêem-se forçados a conviver. Vamos deixar, talvez, para uma outra coluna a discussão sobre se essas alianças esdrúxulas que viraram comuns na democracia brasileira são mesmo necessárias. Aqui, os governos julgam que sim. Então, assim é a vida política por essas paragens.
Há um problema original na convivência entre o PT e o PMDB. E é por isso que ela, dada pela primeira vez de forma oficial, com o PMDB coeso, inteiro, dentro de um governo petista, provoca tantas faíscas. Os petistas sempre desconfiaram dos peemedebistas. Sempre tiveram neles os adversários principais em muitos estados (como o Distrito Federal e o Maranhão, como exemplos). Os petistas são largamente responsáveis (claro, junto com o próprio PMDB e as ações e pensamentos de seus principais caciques) por espalhar o conceito ao longo do tempo de que o atual PMDB é um partido fisiológico e venal. Voltemos, então, ao passado.
Em 1989, Lula consegue um surpreendente avanço nas eleições, ultrapassa Leonel Brizola e vai ao segundo turno contra Fernando Collor. Mesmo com várias restrições ao PT da época, todos os grupos políticos menos conservadores unem-se a Lula no segundo turno. Numa decisão da qual Lula passou o resto da vida penitenciando-se, o PT veta a presença de Ulysses Guimarães nos palanques do segundo turno. Isso mesmo: o senhor Diretas, um dos mais destacados parlamentares na luta contra a ditadura, o anti-candidato, não era considerado pelo PT bom o suficiente para subir no palanque de Lula. Por quê? Porque presidia um partido que já naquela época estava identificado com casos de corrupção que ocorreram no governo de José Sarney. Sarney, que era então alvo das mais pesadas críticas de Lula.
Collor caiu como efeito de uma aliança que PT, PMDB e PSDB, principalmente, fizeram no Congresso na investigação que da CPI do PC. Mas, depois que Collor caiu, o PT recusou-se a fazer parte do governo de coalizão criado para sustentar Itamar Franco. Abrandou a oposição, mas começou a perseguir Luiza Erundina porque ela aceitou ser ministra da Administração. O PT, novamente, não queria misturar-se a um governo que tinha o PMDB como parceiro.
Em 2002, depois da eleição de Lula, José Dirceu negociou a adesão oficial do PMDB ao governo, no período de transição. Chegou a ser marcada uma reunião com Michel Temer, que já presidia o partido, para isso. Mas Lula não quis o PMDB oficialmente em seu governo. Lula já revia seus conceitos de 1989 e tinha em José Sarney agora um amigo. Na época, havia uma divisão entre o PMDB do Senado, liderado por Sarney e Renan Calheiros, e o PMDB da Câmara, liderado por Temer e Geddel Vieira Lima, responsável pelo partido ter fechado com a chapa derrotada de José Serra. Lula achou que pagaria um preço muito alto para ter o PMDB todo ao seu lado. Preço em quê? Em cargos, em benesses. Achou que poderia governar apenas com parte do partido.
O PMDB que ficou de fora trabalhou ao máximo para criar problemas ao governo de Lula. Após a crise do mensalão, Lula ficou com receio de perder o apoio parlamentar. Para o segundo turno, reviu sua forma de lidar com políticos. Formou um governo de coalizão e incluiu o PMDB entre os parceiros.
Foi nesse momento que Temer cresceu. Em 2002, Lula dizia detestá-lo. E o alijava mesmo das conversas com o partido. A partir do momento em que a relação tornou-se oficial, a negociação precisava passar necessariamente por Temer, e ele se impôs, até virar o vice de Dilma.
O que parece ocorrer agora é que o PT – e a parcela que encerra o núcleo do governo – continua a ter as mesmas desconfianças que sempre teve do PMDB. Num cálculo eleitoral, valeu-se da força dos peemedebistas – que formam o maior partido do país, em termos de ramificação municipal – para formar a chapa vitoriosa de Dilma. Mas, agora, novamente tenta blindar os setores que Dilma considera estratégicos em seu governo da influência do PMDB. Com isso, os peemedebistas perderam áreas que comandavam no governo Lula, como a Funasa no Ministério da Saúde e o Ministério da Integração Nacional. Perderam, e agora demonstram claramente o quanto estão detestando isso.
Dilma faz um cálculo político arriscado. Como mostrou em entrevista há alguns dias ao Congresso em Foco o analista político do Diap, Antonio Augusto de Queiroz, Dilma ainda tem 300 deputados na sua base sem o PMDB. Ou seja, talvez sejam mais reduzidas as possibilidades de o PMDB criar embaraços, produzindo pequenas derrotas para negociar com o governo. A prática comum, enfim, de criar dificuldade para vender facilidade. Em tese, Dilma poderia enfrentar esse tipo de reação e enquadrar o PMDB.
Em tese. Porque o que se verifica é que o PMDB tem força para fazer irradiar a crise pelo restante da base. Já reclama pelos cantos, por exemplo, o deputado Jovair Arantes (GO), dos espaços dados ao PTB.
Enfim, sempre houve essa relação de desconfiança entre os dois partidos. No começo, Lula buscou um meio de deixar o partido à margem. Houve uma crise política, e ele acabou cedendo e incorporando o PMDB. Agora, precisamos esperar para ver como vai terminar a nova queda de braço. Dilma conseguirá enquadrar o PMDB? Ou, diante de uma crise, acabará, como Lula, também cedendo? Essa disputa merece muita atenção. Do seu desfecho, dependerá o futuro das relações políticas no Congresso. A pergunta é: não há como formar coalizões que não sejam em torno de cargos e benesses ou um outro acerto político é possível? Na briga entre o humano e o alienígena, como se dará a convivência? Quem cede, quem se impõe?
Deixe um comentário