É a autoridade, e não a verdade, que faz a lei. Thomas Hobbes, Leviatã
Ainda não escrevi sobre Graciliano Ramos (1892-1953), apesar de tê-lo como um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, e ter sido grande amiga de seu filho, o escritor Ricardo Ramos, morto em 1992, com quem fiz um conto a quatro mãos, abrindo na antologia Histórias de Amor Infeliz, seleção de Esdras do Nascimento, nos idos de 1978, o meu se chamou O último tango em Jacobina.
Então, de repente, relí, numa madrugada insone, o fragmento Um Cinturão, incluído em Infância, o primeiro dos três livros autobiográficos de Graciliano Ramos, que reproduzo abaixo com fervor e, como o leitor verá, tem tudo a ver com a epígrafe aí em cima. Antes, um aviso: a reprodução não é literal, quem estiver interessado, que vá ao original:
“As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão.
Meu pai era terrivelmente poderoso, e essencialmente poderoso. Não me ocorria que o poder estivesse fora dele e, de repente, o abandonasse, deixando-o fraco e normal, um gibão roto sobre a camisa curta. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isso era natural.
Meu pai dormia na rede armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, os armadores longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro das rugas nem do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante zangado e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigindo-se a minha mãe ou a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. A força do meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.
Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e arrancando-me dalí, reclamou o cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os sons duros morriam desprovidos de significado.
Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. O homem não perguntava se eu tinha guardada a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça: hoje não posso ouvir alguém falar alto. O coração me bate forte, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas aqui dentro.
Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece pregada a martelo.
A fúria louca ia aumentar. Havia uma neblina e não percebi direito os movimentos do meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Eu já sabia que rogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro.
Junto de mim, um homem furioso, segurando-me o braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta do ABC, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, os rodopios, eram menos sinal de dor que medo reprimido. O suplício durou bastante, mas por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.
Solto, fui me enroscar perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho. Antes de adormecer, vi meu pai dirigir-se à rede, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de couro, que ele próprio desprendera da fivela ao se deitar.
Tive a impressão que ia falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada serenou, os olhos procuraram o refúgio onde eu me abatia, aniquilado. Pareceu-me que a figura imponente minguava e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio costumeiro. Mas, não: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.
Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.
Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça. (1)
Irretocável, universal Graciliano.
(1)In Infância, pgs. 29-33. S.Paulo, Círculo do Livro
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