Argentinos de diferentes matizes receberam demorados aplausos do público de Brasília nos últimos dias. O cineasta Fernando Solanas incendiou uma pequena platéia, no auditório da Caixa Econômica, com seu resistente discurso contra o neoliberalismo. E os talentosos músicos do Gotan Project compartilharam a sua criatividade na Concha Acústica com uma audiência tão numerosa quanto heterogênea, em uma linda noite enluarada às margens do Lago Paranoá.
A dupla exposição deixa clara, inicialmente, a maior aproximação entre a Argentina e o Brasil. A presença dos artistas argentinos responde a um interesse maior dos brasileiros pela cultura do país vizinho – uma resposta tardia ao interesse dos argentinos pela cultura brasileira. Por outro lado, mostra um pouco de duas Argentinas, uma mais ligada a antigas disputas e outra mais conectada com tendências contemporâneas.
Autor de consagrados filmes de contestação ao modelo político argentino das últimas décadas, como o recente Memórias do Saque, Solanas agitou antigas e novas bandeiras em seu encontro com cineastas e produtores de vídeo brasileiros. Falou da briga para se exigir a apresentação de filmes nacionais na televisão e da necessidade da exibição de documentários para o grande público. Criticou o desenvolvimento injusto dos países latino-americanos. E aproveitou para elogiar os ícones da rebeldia contemporânea: Evo Morales e Hugo Chávez.
Para Solanas, segundo relato do Correio Braziliense, o presidente da Bolívia tem demonstrado que se pode fazer uma política contrária às grandes corporações “mesmo no país mais pobre e fraco do continente”. Ele foi ainda generoso com o presidente da Venezuela. Na opinião do cineasta, Chávez – que acaba de fechar a maior emissora privada de televisão do seu país – pode ser considerado o “presidente mais democrático do continente”. E são “muito canalhas” os que dizem não haver democracia ali.
Os músicos do Gotan Project não fizeram nenhum discurso. O único a falar, na verdade, foi um integrante francês do grupo, que é multinacional. A música inovadora foi protagonista. Ali estava o bandoneon, com o qual Piazolla fez a primeira revolução no tango. Também estava uma voz poderosa de mulher para sublinhar a melancolia que ressoa junto ao Rio da Prata. Mas tudo isso estava acompanhado de uma admirável moldura eletrônica, capaz de dar ao tango uma face não só mais contemporânea como também mais universal. Seu primeiro disco, A Revanche do Tango, atingiu a marca de um milhão de discos vendidos.
O tango eletrônico tem sido a trilha sonora de uma Argentina contemporânea. De um país que, sem perder contato com as origens culturais, procura projetar uma nova imagem de futuro. Onde as mais arrojadas obras de arquitetura começam a brotar exatamente na área do antigo porto, por onde se escoavam as exportações que já fizeram da Argentina um dos países mais ricos do mundo.
Não surpreende a solidariedade de Solanas com Morales e Chávez. Após décadas de luta contra o modelo econômico latino-americano, o cineasta vê nos líderes da Bolívia e da Venezuela a resposta política possível ao neoliberalismo. E gosta disso. Como quem desfruta de uma revanche histórica contra antigas lideranças continentais que – e aí poucos discordarão – afundaram mesmo a América Latina em uma onda de atraso e de corrupção.
A opção de Solanas é válida. Assim como a daqueles que querem distância do populismo de Morales e Chávez, que o julgam atrasado, autoritário e isolacionista. O problema é que o futuro do continente vai além dessa tão amada dicotomia entre neoliberais e populistas (rótulos que não agradam a nenhum dos dois lados). Enquanto muita gente ainda gasta energia por aqui com uma espécie de acerto de contas com o passado, em diversos outros países do mundo – muitos deles sem uma gota de petróleo – se traçam estratégias de construção da prosperidade do futuro. Prosperidade que rima com criatividade e se baseia na inovação. Assim como a música do Gotan Project.
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