Sionei Ricardo Leão*
A atitude da Biblioteca do Exército (Bibliex) de reeditar o livro ‘Não somos racistas’, do jornalista Ali Kamel, vem provocando protestos de integrantes da Força e de variados cidadãos interessados na temática igualdade racial no Brasil.
Isso porque a Bibliex cumpre uma função oficial em meio ao aparato do Exército Brasileiro. Por esse motivo, tem a prerrogativa de distribuir obras às unidades militares estabelecidas do país, em outras palavras, tem poder de capilaridade e consequente influenciação.
Ocorre que Ali Kamel, junto com o cientista político Demétrio Magnoli, tem cumprido o papel de franco algoz das políticas afirmativas implementadas no país, para tanto desferindo frequentes ataques à reserva de vagas para negros nas universidades, as decantadas cotas.
Para se ter uma dimensão do incômodo provocado com a iniciativa da Bibliex, transcrevo os comentários, em tom de denúncia, de um oficial de carreira do Exército, cuja identidade preservo por razões óbvias.
“Sou militar, amo a minha profissão, entretanto, não posso me calar diante de um retrocesso financiado pelo dinheiro público, pois esses livros editados e doados aos quartéis têm financiamento do dinheiro público. Não posso deixar que pessoas, de intenções desconhecidas, aproveitem a condição do nosso glorioso Exército, o qual eu tenho imenso orgulho de envergar sua farda, para desconstruir fatos e desinformar pessoas sobre a verdadeira realidade do nosso país”, desabafa o oficial.
A argumentação de Ali Kamel estabelece-se na vertente de que os movimentos negros, amparados por segmentos da intelectualidade, vêm se empenhando pela edificação de uma identidade brasileira, diversa do fenômeno da mestiçagem e de multiplicidade racial, para ele, basilares na formação nacional.
No campo das ideias, portanto, a difusão da obra evoca a reflexão que desde os anos trinta, do século 20, a partir da publicação de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, eclode esse desafio à psiquê étnica, que ininterruptamente clama por várias interpretações e contestações. Não é de se admirar que o Exército Brasileiro conte em seus quadros com “gestores públicos”, que interpretam as inevitáveis discussões sobre integração racial como um desafio. Mais do que isso, como uma ameaça de revisão de alguns dogmas que a instituição patrocinou para si mesmo e para o país, como o da cordialidade.
Ao mesmo tempo, em consonância com o tom indignado do oficial de carreira, é temerário que um típico organismo de Estado decida abertamente por tomar partido, num momento de acirramento, por um viés ideológico, que está muito longe de pacificação.
A doutrina que se ouve dos núcleos responsáveis pelo pensamento militar brasileiro, na atualidade, vai no sentido de se eleger a postura profissional, técnica, distante dos desvarios e engajamentos políticos que as Forças Armadas brasileiras palmilharam em tempos passados, cujos efeitos conhecemos e são muitos. Entre eles, o desgaste perante setores formadores de opinião.
Exército, enquanto instituição, não deve ser de esquerda, de direita, de centro, enfim, não pode se pautar por conduta ideológica, mas ser leal à Constituição e ao poder erigido, democraticamente, das urnas e legalizado pelas instituições competentes para isso.
Por essas razões, ao dar abrigo às digressões de Ali Kamel, o Exército Brasileiro, por meio da Bibliex, incorre num perigoso terreno, e numa trajetória ilegítima, uma vez que não é consensual a grita desse jornalista, na verdade, arrisco classificar como minoritária, embora estridente. Basta notarmos que são cerca de cinquenta as universidades públicas no Brasil que têm ou estão discutindo programas de cotas para negros.
Ou seja, embora a polêmica que se percebe por meio da imprensa, a sociedade, representada pelos colegiados universitários vem espraiando as reservas de vagas, por entenderem-nas como justa reparação a um segmento populacional, sobejamente, marginalizado. Por entenderem também que essas medidas vão contribuir por um mercado de trabalho mais diverso, mais justo, e por campi universitários mais característicos do que é o povo que vive no Brasil.
O “Braço Armado da Nação”, como o EB costuma se auto-representar não tem o direito pela função que lhe confere a Constituição de tomar partido numa peleja que é do escopo do terceiro setor, da intelectualidade, dos partidos políticos, das ONGs, dos desarmados. Estes sim têm o direito e o compromisso do debate e do diálogo permanente acerca de formular idéias que visem um país melhor, sob o abrigo das instituições edificadas para dar ao país a estabilidade e as salvaguardas da paz.
*Atualmente é chefe de reportagem do Clicatv, do Jornal de Brasília e assessor de imprensa na Câmara Legislativa do Distrito Federal. Cursou graduação em jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Puccamp) e na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), onde se especializou em comportamento político.
Deixe um comentário