Um projeto de lei, um líder de governo e uma dúvida. Como uma advogada, referência na defesa dos interesses da indústria alimentícia e conselheira de multinacionais que desenvolvem culturas transgênicas, aparece como autora de um documento em PDF de um projeto de lei de um líder de governo no site do Congresso Nacional, instância máxima do Legislativo brasileiro?
Certamente, a essa hora, quem cometeu o tácito erro de tornar público em um site público uma informação constrangedoramente “sigilosa” está mais do que arrependido. Mas, de fato, a sociedade agradece por essa transparência forçada. A partir desse erro, o nome da advogada tornou-se a ponta de um novelo muito enrolado do qual a sociedade precisa desenovelar essa lã.
A discussão sobre a liberação das tecnologias genéticas de restrição de uso (Gurt, na sigla em inglês) no Brasil é um emaranhado de interesses nada claros. De um lado, está a voz da ciência que, em nome da “verdade absoluta” garantida pelos “argumentos científicos”, diz que a liberação dessa tecnologia é um avanço da humanidade, imprescindível para a raça humana. Falam como se a ciência fosse isenta e imaculada.
Do outro lado, a voz de entidades populares, que não são isentas de interesses, e, por serem economicamente menos poderosas do que os que se dizem com a ciência, partem para a estratégia do medo e do pânico, que nem sempre agrega valor ao debate. Elas aderem e apostam todas as suas forças na precaução: é melhor não liberar, para não causar dependência do agricultor em relação às corporações, muito menos se prejudicar a saúde do consumidor. Sabe-se lá, né?
Vamos combinar que o sonho de toda empresa que deseja se projetar no mercado é tornar seus consumidores fiéis a seus produtos. Fazer com que, periodicamente, um agricultor compre “as melhores, mais produtivas e indispensáveis” sementes transgênicas é o norte de várias multinacionais. O problema é que essa fidelidade acontece por livre e espontânea vontade, ou não.
Mas podemos dizer que o interesse na liberação das tecnologias Gurts não se resume às grandes corporações. Instituições públicas renomadas, cientistas e pesquisadores de órgãos públicos defendem essa mudança na legislação brasileira. Os argumentos vão desde ampliar as pesquisas de vacinas até garantir que todos os consumidores tenham o prazer de comer uma melancia sem sementes.
E quais os efeitos dessas tecnologias à saúde humana? Como fica a situação daqueles agricultores que preferem o plantio tradicional a partir de sementes crioulas? Os que falam em nome da ciência dizem que é possível garantir 100% de segurança no sistema Gurt. Garantem também que sementes guardadas há gerações (sementes crioulas) não serão atingidas com a propagação em larga escala comercial daquelas feitas em laboratório.
As entidades – aquelas que traçam como estratégia propagar ao mundo o temido conceito de sementes terminator, ainda que o mundo científico diga que terminator não exista –, garantem que a vantagem de comer uma melancia sem sementes pode ser paga com vidas, o que não valeria o risco. Preferem trabalhar com o princípio da precaução, muito usado em direito ambiental.
Citando Paulo Leme Machado, em Direito Ambiental Brasileiro, “o mundo da precaução é um mundo onde há a interrogação, onde os saberes são colocados em questão”. “No mundo da precaução há uma dupla fonte de incerteza: o perigo ele mesmo considerado e a ausência de conhecimentos científicos sobre o perigo.”
E acrescenta: “Chegou-se a uma posição de certeza de que não há perigo ambiental? A existência de certeza necessita ser demonstrada, porque vai afastar uma fase de avaliação posterior. Em caso de certeza do dano ambiental, este deve ser prevenido, como preconiza o princípio da prevenção. Em caso de dúvida ou de incerteza, também se deve agir prevenindo. A dúvida científica, expressa com argumentos razoáveis, não dispensa a prevenção.”
Os argumentos científicos para a liberação das Gurts tendem a ser razoáveis. Mas, como ainda há dúvida, é preciso tornar mais clara a prevenção. É certo que evocar o terminator como argumento máximo nem sempre é agregador. Mas desmerecer recomendações e alertas de instituições de respeito, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e a ONU, a respeito do tema, é reduzir os argumentos científicos razoáveis a ideologias. E, por mais que os detentores do saber científico neguem, a ciência é movida por ideologias.
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