Márcia Denser*
Creio que um dos grandes diferenciais entre os governos Lula e FHC é a política externa, pois enquanto este se submetia servilmente ao comando ianque, Lula, astuta e discretamente, faz o que é melhor para o país, e o que é melhor para o país contraria as posições das elites vigentes, eternamente apoiadas pelos norte-americanos. Mas nada como a opinião de observadores externos para comprovar isso. A exemplo de Noam Chomsky que, entrevistado pela Agencia de Prensa Alternativa Humanista “Sur” (APAHs) sobre o desenrolar da crise econômica atual, destaca o novo papel que a América Latina vem desempenhando no mundo e aponta a abertura de uma janela de oportunidades para mudanças na atual ordem político-econômica global.
A seguir, alguns trechos das declarações de Chomsky (que obviamente a grande mídia não vai reproduzir):
“Há mudanças muito significativas na ordem mundial e esta crise talvez contribua para isso. Mas elas estão aí há algum tempo. Uma das principais mudanças na ordem mundial está sendo vivida agora na América Latina. Costuma-se dizer que a América Latina é o quintal dos EUA e que, há muito tempo, é uma região controlada pelos EUA. Mas isso está mudando. Em meados de setembro tivemos uma ilustração dramática disso. No dia 15 de setembro, ocorreu uma reunião da Unasul, a União das Nações Sul-americanas, da qual participaram todos os governos sul-americanos, incluindo a Colômbia, atual “favorito” dos EUA na região. A reunião foi realizada em Santiago, Chile, outro “favorito” dos EUA. Dela, saiu uma declaração contundente de apoio a Evo Morales da Bolívia, e de repúdio aos setores quase-secessionistas (aqui ele quer dizer as elites que querem se despregar do modelito nacionalista boliviano para serem apenas “globais”, como todas as outras do continente) deste país, que contam com o apoio dos Estados Unidos.
Há uma luta muito significativa na Bolívia. As elites estão se mobilizando pela autonomia e mesmo pela secessão, gerando fortes níveis de violência com a evidente concordância dos EUA. Mas as repúblicas sul-americanas assumiram uma postura firme, em apoio ao governo democrático. A declaração foi lida pela presidente Bachelet do Chile. Evo Morales respondeu agradecendo aos presidentes pelo apoio e assinalou, corretamente, que esta era a primeira vez em 500 anos que a América Latina havia tomado seu destino em suas próprias mãos, sem a interferência da Europa nem, sobretudo, dos EUA. Esse é um símbolo de mudança muito significativo que está em curso, denominado “maré rosada”.
Foi tão importante que não foi divulgado pela imprensa dos EUA. Há uma frase aqui, outra ali, que registra que algo aconteceu, mas suprimiram totalmente o conteúdo e a importância do que ocorreu (assim como suprimem completamente o que acontece no atual governo Serra em São Paulo).
Isso é parte de um processo de longo prazo, no qual a América do Sul está começando a superar seus enormes problemas internos e também sua subordinação ao Ocidente, principalmente em relação aos Estados Unidos. A América do Sul também está diversificando suas relações com o mundo. O Brasil tem relações cada vez maiores com a África do Sul, a Índia e, particularmente, a China, país cada vez mais envolvido com investimentos e intercâmbio com países latino-americanos. São processos extremamente importantes, que agora estão começando a chegar também na América Central.
PublicidadeEsses países serão afetados pela crise mas, no momento, não tanto como estão sendo a Europa e os Estados Unidos. Se olhamos o caso da Bolsa no Brasil, ela caiu muito rapidamente, mas os bancos brasileiros não estão quebrando. Do mesmo modo, na Ásia, as bolsas estão declinando agudamente, mas os governos não estão assumindo o controle dos bancos, como ocorre na Inglaterra, nos Estados Unidos e em boa parte da Europa. Essas regiões, América do Sul e Ásia, de alguma maneira conseguiram se separar das calamidades dos mercados financeiros. O que desatou a crise atual foram os empréstimos subprime para ativos construídos sobre areia, e estes, claro, estão em mãos de estadunidenses e de bancos europeus. O fato de possuir ativos tóxicos baseados em hipotecas os envolveu muito rapidamente nestes acontecimentos.
A Ásia e a América Latina ficaram muito menos expostas por terem mantido estratégias de crédito mais cautelosas, particularmente a partir do descalabro neoliberal de 1997-1998. Um grande banco japonês, Mitsubishi UFG, acaba de comprar uma parte substancial do Morgan Stanley, nos EUA. Então, não parece, até agora, que a Ásia e a América Latina serão afetadas tão gravemente como Estados Unidos e Europa.”
Naomi Klein é da mesma opinião. Segundo ela, é na América Latina, o laboratório original da Escola de Chicago, que a reação ao neoliberalismo assume uma forma distinta, mais esperançosa, reação que não se dirige aos mais fracos ou vulneráveis, mas se concentra estritamente na ideologia que constitui a raiz da exclusão econômica. Diferentemente da situação da Rússia e da Europa Oriental, existe um entusiasmo irreprimível de experimentar idéias que foram enterradas no passado. O segredo sujo da era neoliberal foi que as concepções social-democráticas jamais foram derrotadas numa grande batalha de idéias, tampouco rejeitadas nas eleições.
É exatamente porque o sonho da igualmente econômica é tão popular e tão difícil de derrotar numa luta justa que a doutrina do choque – “choque econômico”, “ajuste estrutural”, “política de vodu” ou mesmo guerra aberta como Iraque ou golpe militar – foi implantada. Washington sempre encarou o desenvolvimentismo como uma ameaça muito mais poderosa do que o comunismo totalitário, que era fácil de incriminar e transformar em inimigo útil.
Nas décadas de 1960 e 1970, a tática usada pelos EUA para lidar com a popularidade inconveniente do desenvolvimentismo e da social-democracia foi a de tentar equipará-los ao stalinismo, borrando deliberadamente as diferenças claras entre eles. Atualmente, a identificação de todas as oposições ao terrorismo desempenha o mesmo papel.
Falando em quintal, uma das frases prediletas de FHC era de que “tinha uma pé na cozinha… francesa”.
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