Fazendo um balanço das opiniões de personalidades de quase todas as áreas – da política ao esporte, da publicidade ao teatro – a respeito do “movimento” Cansei¹ e seus desdobramentos, constatei que todas enfatizam um conceito-chave: a mediocrização (e assemelhados como emburrecimento, barbárie, idiotice, irrelevância) generalizada. Do ser humano, do pensamento, da política, das artes, da mídia, do Brasil, do mundo, do debate público. Sobretudo do debate público.
E essa mediocrização – resultado dum contínuo e persistente embotamento de idéias aliado à discussão de irrelevâncias – é simultânea a um processo de radicalização que, por sua vez, não deixa espaço para diferenças, inibe o diálogo inteligente, quando não o extingue por completo. Radicalização que faz a defesa ideológica do preconceito e do privilégio e cujo objetivo é a normalização, a institucionalização do preconceito e do privilégio.
Para o economista Nildo Ouriques, “essa nuvem de mediocridade é insuportável para quem pensa politicamente e para a maioria do povo, que nem pode pensar, mas ela é ultrafuncional e intencional porque vão nos levando no bico, de escândalo em escândalo, como se essa fosse a grande política. Este é o primeiro aspecto da mediocridade. O outro é que as condições econômicas estão permitindo a todas as frações do capital ganhar. Saiu na Exame. Em todos os setores: industrial, bancário, latifundiário, comercial, agrário. As frações do capital – comercial,agrário,industrial e financeiro, que estão maravilhosamente bem, fecharam um pacto, endividando o país na dívida pública interna, que já passou de 1,4 trilhão. Então, o seguinte: enquanto perdurar este pacto que a economia garante, eles não discutem nada essencial. Taxa de desemprego elevadíssima, salários muito baixos, a cultura do país submetida à industria cultural dos países centrais, enfim: enquanto persistir essa aliança entre os de cima, só a indignação dos de baixo não é suficiente para romper tal mediocridade”.
“Acho que o mundo, não só o país, vive um momento de mediocridade. Se houve uma infantilização da linguagem, que é o que Hollywood nos oferece, há cada vez menos diálogo, menos tempo para pensar. As propagandas de cerveja, mesmo a do “Ão”, reforçam o preconceito. A publicidade já não sabe rir de si mesma. Um negócio, burro, cheio de preconceito, e mais, ela está defendendo ideologicamente isso. As pessoas ficam defendendo o direito a exercer o preconceito. A propaganda está retratando fielmente esse momento tosco que estamos vivendo. Olho os comerciais e falo ‘meu Deus do céu’! Houve uma emburrecida, o humor é tão grosseiro, agressivo, berrado”. (Ercílio Tranjan, publicitário);
“Sintoma mais visível da mediocridade nacional hoje? O não existirmos. A farsa ficou uma grande excitação. A cópia é a mais difícil das artes. Copiem Picasso, Portinari, Cézanne. Lembro uma empregada, há 40 anos, que saltou duma janela em Copacabana e deixou um bilhete: Cancei”. (Antonio Abujamra, ator e autor teatral);
“Acho medíocre tudo isso, não leva a uma discussão inteligente, não se discute política de maneira inteligente. Há um blog que reproduz minhas charges e lá tem comentários. Parece que as pessoas estão atônitas, conseguem enxergar apenas uma cor. Uma crítica ao Lula e você é execrado. Uma crítica à direita, e os direitistas te execram. Não percebem que não estou ali fazendo campanha nenhuma. Estou fazendo crítica, é a função da charge. Charge a favor não existe!”(Angeli,chargista);
“O Campeonato Brasileiro reflete bem o que está acontecendo, não tem coisa mais desanimadora. Nunca tivemos tão poucos ídolos, todos vão cedo para o exterior. Com o Dunga, não importa se vai jogar bem ou mal, o importante é o resultado. A seleção ele pode montar com quem está fora, já que a mediocridade é mais ou menos universal. O Dunga representa bem essa cabeça de hoje, do medíocre, do sujeito tacanho.” (José Trajano, jornalista).
“O Brasil ficou medíocre, não tem projeto, não tem futuro”. (Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente e sociólogo).
“Não privatizemos a mediocridade, ela não é exclusividade nossa. Está bem difundida mundo afora, é só olhar as séries de televisão, certa literatura. Voltemos para um passado recente: quando esses caras tomaram como bula e guia as revistas que propõem o alto luxo como cultura não alegaram cansaço, né? Não se cansaram do uso do adjetivo ‘exclusivo’, que implica exclusão, ilustrada com fotos de relógios e barcos. São estes os protagonistas do descontentamento? Há séculos que no Jardim Ângela, no Amazonas, nas escolas devastadas o pessoal está farto. Andamos tão desarticulados que uns se juntam com suposta cara cívica, outros jogam janela abaixo dejetos das casas. Se isso não é barbárie plantada em quatro patas, então inventem outro nome. Porque é”.(Tom Zé, compositor)
“As pessoas perderam a sensação de que ‘está ruim para mim, mas para nossos filhos vai ser melhor’. Agora existem coisas que para nossos filhos podem ser muito piores. A mediocridade é simultânea a um processo de radicalização muito grande. Para fugir da própria mediocridade as pessoas radicalizam de forma maluca. Na campanha, o Alckmin era a mediocridade porque era um chuchu, isto é, mediocridade total. Não tinha o que dizer, chegou ao segundo turno sem apontar nada, não sabia onde pegar o Lula…” (Marcelo Coelho, sociólogo e escritor).
“Essa indignação é uma farsa. O Cansei é o movimento do espetáculo. Lendo o texto escrito pela OAB – cujo presidente eu supunha mais bem informado sobre o Brasil – não pude deixar de achar engraçado: começa com a palavra ‘cansei’, faz uma enumeração de coisas, e termina ‘de não fazer nada’. Então são pessoas cansadas de não fazer nada, que nunca fizeram nada pela correção das injustiças, inclusive da corrupção. Não imaginava que as pessoas se cansassem de não fazer nada!” (Dalmo Dallari,jurista).
O que dizer de tudo isso? Vai passar, precisa passar, tem que passar, do contrário, nem a vida nem a arte ou até o próprio ser humano não faz sentido. Ah, sim, a pérola do Cansei ficou por conta do senhor Alencar Burti, presidente da Associação Comercial de São Paulo: “Eu sou, sim, um idiota, mas um idiota consciente!”.
[1] Revista Caros Amigos, setembro/2007.
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