Para além do cotidiano das eleições, dos fatos mais imediatos tais como o discutidíssimo livro Os porões da privataria de Amaury Ribeiro Junior – três prêmios Esso, quatro prêmios Vladimir Herzog – uma impressionante coleção de dados e cifras envolvendo a família, os amigos, assessores de confiança de José Serra, seus laços societários e eleitorais com a família de Daniel Dantas, suas ligações com as privatizações e movimentos milionários de dólares, dentro e fora do país, um artefato prestes a explodir no colo da coalizão demotucana, com lançamento previsto para depois da Copa do Mundo.
Para além de tudo isso e muito mais, prossigo tentando traçar, para mim e para os leitores, o verdadeiro panorama que se revela ao se colocar em perspectiva histórica todo som e fúria de vilezas e interesses mesquinhos – eternamente silenciando o bem comum – e que constitui secularmente o anfiteatro de ações e torpes manobras de nossas elites cleptocráticas que reiteradamente colocam em colapso (e fora da vista do grande público) um projeto de país.
Ou ex-país, ou semipaís, ou região, segundo Roberto Schwarz. Sem contar que a estupidez cresce no buraco deixado pela ausência de pensamento de nossos intelingentérrimos, buraco aliás recheado por todos os clichês encontráveis em qualquer almanaque de globalização, algo como uma cosmogonia da asneira com legendas em português neoliberal.
Mas tudo isso é preâmbulo para comentar, conforme prometi na coluna passada, um artigo publicado na revista Margem Esquerda 14, “Dos estudos da formação à greve como formação” de Luiz Renato Martins. Em termos objetivos, ele trata da perda de um sentido histórico dos atos culturais e artísticos, do naufrágio que engoliu, tanto países periféricos como centrais, quando submetidos à hegemonia do discurso neoliberal anglo-saxão, engolfados pela idéia do “pensamento único”, ou seja, pelo esquecimento da noção de luta de classes.
Em suma, acreditamos no “fim da história” – a nossa, sobretudo a história da nossa cultura. Que doravante deveria incorporar-se ao universo dos negócios em geral, e do capital fictício em particular. Todos globais. O autor aponta dois sintomas desse processo:
“¹) a extinção da função crítica das artes e do pensamento em relação ao todo do processo histórico moderno; 2)o papel paradigmático, central e inovador desempenhado pelas artes e pela arquitetura nos novos negócios, especialmente financeiros e imobiliários;”, fazendo raporte a Otília Arantes, “A ‘virada cultural’ do sistema das artes”. A questão é que a etapa histórica da chamada formação nacional (e seu diagnóstico histórico-crítico), ao lado da criação dos mercados nacionais, entrou em retrocesso com o advento do modelo neoliberal, o que deu origem ao complexo de sintomas que, no Brasil, denomina-se desmanche.
Martins explicita o termo formação como construção de uma tradição, não no sentido conservador, mas sim modernizador e transformador; no limite, inventar uma tradição num contexto onde esta não existe, no sentido de Mário de Andrade de tradicionalizar o presente, isto é, traçar um passado a partir de um presente, empresa levada à cabo pela arte moderna brasileira. Aliás, o tema formação absorve a produção, a crítica e a discussão das artes e das ciências nas décadas de 1930 a 1950, sempre vinculada à preocupação com a construção da nação: o que é, de onde vem e para onde vai a formação histórica chamada Brasil? Passando por Gilberto Freyre (Casa-grande & Senzala – 1933), Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil – 1936) e chegando a Caio Prado Júnior (Formação do Brasil Contemporâneo) que conclui sombriamente: “nascemos para atender ao mercado europeu e nada mais”.
Razão pela qual nossa intelectualidade crítica sempre foi consciente de que “não se tratou jamais de construir uma sociedade na América portuguesa, mas sim uma unidade produtiva avançada da maior rentabilidade. Por exemplo: o tráfico negreiro foi o negócio mais rentável do mundo enquanto durou. Até porque a produção de açúcar e extração de ouro seriam impensáveis sem ele. Inclusive a idéia de formação de uma sociedade existia mas como objetivo futuro, já que a nação não existia”.
Escreve o autor: “O Brasil, que não era uma nação, tinha raiz no trauma de que se constituíra no país o maior e mais duradouro campo de concentração da história do Ocidente. Basta comparar a escala das monstruosidades de Dachau ou Auschwitz, que duraram menos de quinze anos, com o genocídio africano no campo de concentração brasileiro, efetivado em toda a extensão de seu território, incluindo todo o espaço produtivo e doméstico, não só na colônia como também no Brasil independente – algo que já dura cinco séculos. Desse mal-estar pouco se falou, com exceção de Machado de Assis. Não obstante, a questão continua pendente e bem pouco elaborada.”
Ainda na década de 1950, com a Cepal de Celso Furtado e Raul Prebish, descolonização e formação passaram a ser entendidas como crítica e superação do subdesenvolvimento. A esta altura entra Antonio Cândido (Formação da Literatura Brasileira – 1959) cujos estudos o levam a afirmar que se os estrangeiros esperavam da literatura brasileira somente a apresentação de temas exóticos (tucanos, zés cariocas, bananas, garçons & macacos incluídos) é porque a abordagem dos problemas humanos fundamentais era um privilégio das velhas literaturas (e culturas centrais). O mesmo que dizer para entregar ao consumo externo todas as nossas riquezas naturais deixando a indústria para os de fora, cujos produtos deveríamos importar. Todos. Desde parafusos ao MacDonald’s, passando pelas idéias, teorias, filosofias e culturas centrais.
Mas a cultura – não a economia – é infra-estrutura (1) . Para as nossas elites cleptocráticas, a ausência de formação simbólico-cultural da nação, esta carência infra-estrutural é o objetivo central e necessário para a “manutenção sustentável” da fazenda-modelo ou campo de concentração ou ex-país ou semipaís ou região. E campo de concentração precisamente no sentido daquela piadinha nazista: eles (o povo) acampam e nós (a elite) concentramos. Concentramos o que?As rendas. Todas. E esta clareza “básica” detona qualquer ilusão.
Voltando: desde a colônia, segundo o autor, a vida mental brasileira aponta para uma constante: a mania das modas culturais. Sílvio Romero já notara isto no século XIX: “Na história do desenvolvimento mental do Brasil há uma lacuna: a falta de seriação nas idéias, a ausência de uma genética, um autor não procede de outro, um sistema não é conseqüência de algo que o precedeu.” A dependência de autores e agentes culturais estrangeiros corresponde à necessidade das elites de se pautar pelo mercado externo. A conseqüência é a permuta incessante de referências, sem reflexão crítica ou debate, motivada pelo desejo de reconhecimento e atualização cosmopolita.
A propósito, comenta acidamente Paulo Emílio Salles Gomes (1973): “Não somos europeus nem americanos do norte mas, destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro”. Segundo Antonio Cândido (como já assinalei várias vezes aqui nesta coluna), as elites periféricas se desenvolvem em termos “desiguais e combinados”, isto é, sem serem acompanhadas pelo resto do país: a formação do nosso sistema literário, concluída em 1970 com a obra de Machado de Assis, coexistiu com a escravidão.
E Martins conclui: ”À complexa questão histórica agrega-se hoje a aguda problemática contemporânea do desmanche, cuja marca é o abandono do juízo histórico reflexivo que engendrou o ideal da formação. O abandono de tal juízo e da proposição crítica de futuro como projeto distinto da atualidade – em favor da solução de um declarado estado de emergência – significa o estabelecimento permanente de um estado sem nenhuma outra prioridade que a do “salve-se quem puder”, sob a lei do mais forte”.
Eis o que se coloca duplamente como tema de reflexão: de um lado, a determinação crítica concreta entendida como formação ou construção simbólico-cultural da nação, de outro, as renúncias nacionais derivadas do que hoje é o desmanche. Mas a coisa não fica por aí, isto é, apenas como texto e artigo. A propósito dessas questões, foi criado na USP o centro de estudos Desformas – Desmanche e Formação de Sistemas Simbólicos, que reúne um coletivo interdisciplinar de pesquisadores, a conferir neste site.
E já que estamos tratando de sistemas simbólicos, por aí então se entende a ausência absoluta de reconhecimento/identificação, por parte da elite nacional, da projeção do presidente Lula e elevação do status do Brasil no presente contexto internacional: mutatis mutandis, ocorreu o desenvolvimento “desigual e combinado” (formulado por Cândido) do presidente (identificado com o trabalhador analfabeto nordestino, a base da pirâmide social) e do Brasil (pré-fixado no inconsciente colonial como ex-país ou semipaís ou região ou campo de concentração) só que, desta vez, em sentido inverso, isto é, sem serem acompanhados pela elite do país.
Perfeito. Também pela primeira vez, são pouquíssimos os prejudicados. Eu deportaria todos – latifundiários, donos de jornalões, neotraficantes, banqueiros, especuladores universais do reino de deus, rentistas de quatro costados – salvo os americanos que já estão lá – , e você?
(¹) Ver Paulo Arantes em nota da rodapé in Zero à Esquerda (2004)
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