Márcia Denser*
Agora estou lendo a biografia de Gore Vidal escrita pelo próprio (Palimpsesto, memórias. Rio, Rocco, 1996), considerado o maior rival e inimigo declarado de Truman Capote. Quer dizer, “lendo” é força de expressão, antes “decifrando” aquilo que sobrou duma péssima tradução: ironicamente tanto Vidal quanto Capote em versão brasileira empatam, isto é, são igualmente mal traduzidos. E, absurdamente, Gerald Clarke, um escritorzinho de quinta categoria, biógrafo de TC [1], recebe uma tradução impecável assinada por Lya Luft (lembrando que, um dia, ela foi uma escritora rigorosamente da série literária).
Os agentes literários desses dois não deviam nos subestimar tanto, people do third world. É por coisas desse tipo que se descobre o que o primeiro mundo pensa do Brasil e tudo o mais que vive e respira por aqui – em estreito convívio urbano com cobras, jacarés, coquetéis servidos em cocos, garçons & macacos incluídos. E não estão errados, sobretudo ultimamente, de forma que tudo o que tais obras podem fazer é dialogar com a ignorância do público e a ausência da crítica: clamar no deserto! Sobra apenas aquela meia dúzia de leitores privilegiados (onde me incluo, claro) que ainda lembram que as coisas nem sempre foram assim por aqui. Noves fora.
Voltando a Gore Vidal: naturalmente entre as memórias de GV escritas pelo próprio e a biografia de TC escrita por um sujeito de quinta, naturalmente se fica com o primeiro (quer dizer, depois que se desconta a péssima tradução, o maldito editor que precisa diminuir custos, o maldito agente literário que nos subestima, o maldito autor que fica de touca porque é um idiota, etc, etc, etc.), mas também fica algo que, ao fim e ao cabo, realmente conta, que é a obra de um e outro e, no caso, TC ganha disparado.
Afinal, quem já não leu (ou ouviu falar ou assistiu ao filme) Bonequinha de Luxo ou A Sangue Frio? E o quê, você, leitor brasileiro, já leu de Gore Vidal, que mal lhe pergunte: A Cidade e o Pilar ou Myra Breckenridge ou Burr ou Duluth? Hein? Talvez um pouco mais recentemente Washington D.C. ou Império, pois fazem parte da crônica política americana contemporânea.
Recentemente EU li Washington D.C. e não lembro duma só palavra mal fechei o livro. Terá sido a má tradução? (também da Rocco, como esta gentilmente me lembrou na orelha de Palimpsesto) Que o nivela a qualquer coisa escrita por Sidney Sheldon? – Outro com ISO 90.000 de Esquecibilidade? Bem mais memoráveis são os ensaios de Gore Vidal – aquele dedicado a Scott Fitzgerald é genial e divertidíssimo.
Daí que as Memórias idem porque, na verdade, Gore me parece O Cronista Norte-Americano por Excelência, não o Ficcionista, tal como ele se imagina (sorry, cara, que é Capote e, num nível mais elevado, Steinbeck, Hemingway, Faulkner, em razão da Universalidade de tais autores), inclusive o próprio Gore himself que, o tempo todo no livro, faz questão de enfatizar seu sangue azul, suas raízes como neto de senador, suas conexões com a Casa Branca, suas intimidades com Jack e Jackie Kennedy (meio-irmão por parte de pai de Jacqueline Kennedy, née Bouvier), suas divergências com Bobby K – QUEM mais podia estar por dentro de tudo senão ele próprio? Mas falta algo, não sei – a tradução não destrói tanto assim um grande escritor, não o fez com Capote.
Ainda assim, há momentos de elevada intensidade poética, o sujeito sabe o que está fazendo, sem contar algumas declarações absolutamente incríveis, conquanto memória político-literária de curto, médio e longo prazos (devia ser leitura obrigatória no vestibular, eu falo sério), até porque se a literatura é a única arte que não pode ser globalizada (e é a barreira da língua que felizmente a impede), por outro lado ela é internacionalizada – seus valores são válidos universalmente
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